Pular para o conteúdo principal

O que você fez enquanto o Whatsapp estava fora?

 

Os primeiros quarenta e cinco minutos foram os mais difíceis. A síndrome da falta de notificações disparando a cada ausência de disparo real me levou a checar o celular inúmeras vezes, apenas para entender que algo com a minha internet estava errado. Mas o quê?

Eu tinha pago os boletos, o celular era novo, estava em área de cobertura. Mesmo assim, reiniciei o aparelho duas vezes, sem sucesso. Foi quando resolvi abrir uma aba e digitar que percebi a dimensão do estrago. Era o apocalipse das comunicações, o armagedon da fofoca, o clássico fim das eras que eu tinha visto no cinema e que agora se realizava bem debaixo do meu nariz.

Nas horas seguintes, rodei pelos cômodos da casa sem me decidir se esperava o sistema voltar ou se partia para outra e tentava matar o tempo. Queria fazê-lo avançar, não suportava a ideia de que os minutos se contassem a conta-gotas, sem a interação para mediar esse envelhecimento ultralento. Era como se tivesse sido sequestrado pelo presente, capturado por uma lógica que me colocava de volta na ampulheta, enquanto era obrigado a contar cada grão daquele recipiente.

Escolhi o ócio criativo – em vão. A cada dez minutos eu me punha a espiar o celular. “Vou apenas conferir”, dizia a mim mesmo, num coaching reverso, sabotando a pouca atenção que havia conseguido reunir em torno de uma atividade banal que me dispensasse da tarefa de me conectar a outras pessoas e esperar ansiosamente que respondessem as minhas respostas, que, por sua vez, já eram respostas para as suas respostas, numa cadeia cujo início era impossível de rastrear.

Tentei um livro, depois lavar os pratos, varrer, escrever, fazer abdominais, pintar uma parede, tomar um banho, me alimentar, tomar remédios, telefonar para meus pais, pedir comida e estocá-la, mas nada havia me preparado para aquela suspensão.

Se ninguém me respondia, e eu tampouco respondia a um chamamento privado, o mundo deixara de existir, não havia prova material de que estivéssemos vivos. Sem notificação, sem batimento, o orgânico imbricado no inorgânico. A vida tinha se transformado num episódio de “Lost”.

Passei a ler compulsivamente sobre o assunto. Tudo fazia sentido e nada parecia realmente explicar a queda ou pane, como estavam chamando. Um possível ataque terrorista, alguém tropeçou na tomada enquanto caminhava na sede da empresa do Mark ou um defeito banal cujo nome atendia por uma sigla que ninguém compreendia ao certo?

O cenário, já suficientemente pós-apocalíptico, acabou se tornando mais ainda por causa do grau de esoterismo com que a situação se revestia. As explicações oficiais pareciam um esboço de roteiro de filme do Shyamalan.

A falta de soluções e a demora em resolver o problema, tudo indicava que o tal desajuste na configuração era algo que requeria muito e pouco investimento, o que se traduzia em muita ou pouca espera, muito ou pouco tempo parado enquanto a tela do celular se mantinha estática, como o Hal 9000 prestes a disparar um ataque global e simultâneo de proporções catastróficas. 

Mas decidi esperar. E esperei, esperei, esperei. Estou esperando ainda. O ano é... Já nem lembro. Nas ruas, de vez em quando, ouço lobos uivarem. O vento assobia na fresta da janela, trazendo cheiro de gasolina. Às vezes, quando me canso de ficar encolhido num canto da sala, vou até o outro lado do corredor e volto. Ocasionalmente dou uma olhada no celular, que apagou por completo ontem e agora me persegue como um fantasma.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

A mancha

Vista de longe, em seu desenho irregular e mortiço, a mancha parecia extravagante, extraterrestre, transplantada, algo que houvesse pousado na calada da noite ou se infiltrado nas águas caídas das nuvens, como chuva ou criatura semelhante à de um filme de ficção científica. Mas não era. Subproduto do que é secretado por meio das ligações oficiais e clandestinas que conectam banheiros ao litoral, tudo formando uma rede subterrânea por onde o que não queremos nem podemos ver, aquilo que agride os códigos de civilidade e que é vertido bueiro adentro – o rejeito dos trabalhos do corpo –, ganha em nossos encanamentos urbanos uma destinação quase mágica, no fluxo em busca de um sumidouro dentro do qual se esvaia. A matéria orgânica canalizada e despejada a céu aberto, lançada ao mar feito embarcação mal-cheirosa, ganhando forma escura no cartão-postal recém-requalificado e novamente aterrado e aterrador para banhistas, tanto pela desformosura quanto pelos riscos à saúde. Não me detenho na es

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas