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Bonito de máscara

Há um tipo que se lamenta à medida que as restrições sanitárias vão se afrouxando e por todo canto a vida se impõe como novidade: o bonito de máscara. É categoria nova, criada pela pandemia, que, entre outras mudanças, alterou radicalmente o regime estético nacional, diria global, planetário, mas receio exagerar. De modo que me sinto à vontade apenas pra falar da cidade e, quando muito, do bairro. Aqui, por todo canto veem-se ainda as pessoas usando a máscara, mesmo nas mesas de café e na cantina do supermercado, levantando-a para morder a coxinha ou mergulhar o pão no café, mas logo cobrindo-se de novo. É conduta misteriosa, pensei comigo, eu mesmo relutante entre continuar sob a máscara e me descobrir brevemente enquanto me alimento. A insistência do hábito, suspeito então, não tem relação apenas com cuidados, tampouco com apego desmedido a um acessório que, antes estranho, foi progressivamente incorporado ao dress code de qualquer vivente. Não que o cearense se esmere assim tão mais...

Placas de cidade

  Numa viagem gosto sempre desse momento em que se atravessa o portal de boas-vindas, a placa anunciando que, dali em diante, está-se lá, na cidade, que pode ser qualquer uma. Placas dessa natureza não se distinguem, são iguais, mudam-se os nomes, mas a mensagem é a mesma. Talvez por isso tenha simpatia por elas, por essa tentativa algo ingênua de fazer supor que, apenas pelo poder da sugestão, vive-se num clima diferente porque, afinal de contas, estamos a atravessar essa cidade e não outra, então é como se o tempo se suspendesse. E esse contínuo do deslocamento de uma viagem sertão adentro se corta, se interrompe, é feito de pequenas travessias por lugares em tudo iguais, principalmente nas placas. Mas vejam como são bonitas, como carregam poesia nessa cafonice que é desejar que volte sempre, na espera de que o visitante, mal tendo passado, haja construído sobre o vilarejo uma impressão definitiva, marcante, de modo que da cidade sempre se lembrará e, mais que isso, dela sempre t...

O que você fez enquanto o Whatsapp estava fora?

  Os primeiros quarenta e cinco minutos foram os mais difíceis. A síndrome da falta de notificações disparando a cada ausência de disparo real me levou a checar o celular inúmeras vezes, apenas para entender que algo com a minha internet estava errado. Mas o quê? Eu tinha pago os boletos, o celular era novo, estava em área de cobertura. Mesmo assim, reiniciei o aparelho duas vezes, sem sucesso. Foi quando resolvi abrir uma aba e digitar que percebi a dimensão do estrago. Era o apocalipse das comunicações, o armagedon da fofoca, o clássico fim das eras que eu tinha visto no cinema e que agora se realizava bem debaixo do meu nariz. Nas horas seguintes, rodei pelos cômodos da casa sem me decidir se esperava o sistema voltar ou se partia para outra e tentava matar o tempo. Queria fazê-lo avançar, não suportava a ideia de que os minutos se contassem a conta-gotas, sem a interação para mediar esse envelhecimento ultralento. Era como se tivesse sido sequestrado pelo presente, capturado po...

Tsunami

  Passa das dez, a mãe envia uma mensagem de áudio. Está preocupada com a tsunami. E se a onda chegar aqui, pergunta, e se estiver dormindo, e se não der tempo de correr, e se, e se, entre divertida e preocupada. Temos preocupações semelhantes. Não importa se as chances são remotas e nada disso vai acontecer. É a hipótese que assusta. À noite, antes de dormir, penso no ponto mais alto do meu estado, da minha cidade, do meu bairro, e me pergunto também se chegaria a tempo de escapar, de não ser arrastado. As imagens daquele filme com o ator que faz o Homem-Aranha se reproduzindo em escala local, no lugar daquelas vias e hotel, as casas e ruas de Fortaleza. Mãe, a senhora sabe que a probabilidade é pequena, eu li a matéria que fala com o cara do Labomar, ele disse pra gente ficar despreocupado, dormir sossegado, não vai ter onda. Disse isso mesmo? Tento lembrar as palavras exatas e não consigo, mas o sentido é esse mesmo, confirmo, estou falando de cabeça, mãe. E lhe digo então que a...

O jantar de Temer

Talvez seja tarde para escrever sobre o jantar, talvez não seja. Exatamente porque o jantar, o rito que o destaca e arranca do tempo, como o decalque de uma pintura, constitua a razão pela qual encarar aquele conjunto de comensais seja algo que se possa fazer hoje ou daqui a 150 anos, não importa. Repasso cena a cena, os seus 59 segundos de puro divertimento talhado numa chave gestual gongórica e vazado numa cartela de cores do ancien régime. Quadro a quadro, o vídeo exala ar de fim de festa, embora, a julgar pelos pratos vazios e o andamento acelerado dos garçons, presuma-se que a refeição não tenha sido ainda servida. Um baile da Ilha Fiscal remasterizado para novas plataformas e com novos personagens desbloqueados depois do mezzo golpe do 7 de setembro, como se tivéssemos avançado de fase. E agora os vilões fossem outros e outros também os desafios. As roupas no mesmo tom de azul, sem gravatas, denotam informalidade, mas uma informalidade passadiça, quase inadequada, como se compra...

Barthes morreu

  Outro livro começa: Roland Barthes morreu em 26 de março de 1980. É um fato incontornável. Barthes morreu. A data registrada do óbito é a indicada na página: 26 de março. O ano é 1980. Não há que se discutir. Não existe mistério, tampouco duplo ou triplo sentido. Qualquer jogo de palavras. Mesmo para um estruturalista, linguista, apaixonado, um escritor, um esteta, tudo que se queira dizer de Barthes, inexiste complexidade na sentença que se anuncia. Morreu pouco menos de três meses antes de eu nascer. Isso não tem importância também. Cito apenas porque, para calcular esse intervalo entre março e junho, precisei me concentrar e contar nos dedos. Tenho feito isso sempre que a realidade escapa. Apelo aos dedos, estiro todos os da mão e começo a contar, como se retornasse ao infantil, ao maternal, ao primórdio, esse mesmo tempo do qual minha filha agora vai se despedindo, porque já não precisa do auxílio das mãos para fazer suas operações matemáticas. Usa a cabeça, as ideias, repro...

Bar do hotel

  Começo o livro: uma mulher estava sentada no bar do hotel... Não tenho paciência para continuar, sabe-se lá por quê. Quer dizer, acho que sei. Está na cara que essa mulher não existe, esse bar não existe, esse hotel não existe. Nada na frase “uma mulher estava sentada no bar do hotel” existe de fato. Tudo inventado, e não que isso seja um problema. Não é. O problema do problema é a parte calculada. Logo imagino todos os passos da construção da personagem, quem é a mulher, o que faz, seus motivos, se os tem explicitados ou se os carrega no bolso, disfarçados como papel de bombom. Amassados e levados aonde vá. A mulher no bar do hotel é impalpável. Tenho preguiça de acompanhá-la porque sei que não está lá, é uma mentira, um artifício, a mão exposta de quem conta a história. A atitude de quem se põe a contar a história já causando, de partida, um certo fastio. Interrompo, vou dormir. Não quero dormir. Pego outro livro, mas ler também está fora de cogitação. Escrevo, mas em seguida...