Talvez seja tarde para escrever sobre o jantar, talvez não seja. Exatamente porque o jantar, o rito que o destaca e arranca do tempo, como o decalque de uma pintura, constitua a razão pela qual encarar aquele conjunto de comensais seja algo que se possa fazer hoje ou daqui a 150 anos, não importa.
Repasso cena a cena, os seus 59 segundos de puro divertimento talhado numa chave gestual gongórica e vazado numa cartela de cores do ancien régime.
Quadro a quadro, o vídeo exala ar de fim de festa, embora, a julgar pelos pratos vazios e o andamento acelerado dos garçons, presuma-se que a refeição não tenha sido ainda servida. Um baile da Ilha Fiscal remasterizado para novas plataformas e com novos personagens desbloqueados depois do mezzo golpe do 7 de setembro, como se tivéssemos avançado de fase. E agora os vilões fossem outros e outros também os desafios.
As roupas no mesmo tom de azul, sem gravatas, denotam informalidade, mas uma informalidade passadiça, quase inadequada, como se compradas na mesma loja pelo mesmo empregado. Note-se o impróprio da situação: algo ali se desenrola fora do quadro, da tela, como um conto macabro, um fundo falso sob o qual talvez encontremos o cadáver de algum dos milhares de mortos pela Covid.
Do que riem os convivas? Esse riso por si é pornográfico, obsceno, num duplo sentido: o da falta de pudor, riso desavergonhado e contrário ao contexto de luto, mas também porque “oposto à cena”, conforme sua raiz etimológica: o que “não se pode levar ao palco por atentatório à moral”.
Segundo, percebam o mesmo Temer replicado como um doppelgänger ad infinitum. Temer, como o agente Smith de “Matrix”, cria a sensação de que se está diante da mesma entidade, e faz sentido que seja assim.
Smith é uma espécie de falha da máquina, um duplo de si mesmo, um constructo que se autonomiza e rebela contra o sistema, passando a impor o próprio regime, o que ameaça tanto humanos quanto as inteligências postiças, que selam uma aliança provisória para combatê-lo.
Ora, o que faz Temer? Agencia uma “pax” precária entre um presidente abertamente golpista, uma máquina de cuspir e horrorizar, e um ministro do Supremo, entre Executivo e Judiciário, ou pelo menos é assim que deseja que todos interpretem esse arranjo. Como um milagre da articulação, um feito do intelecto desse homem cujos modos melífluos ornavam o noticiário até poucos anos atrás, sendo substituídos pelos disparates e show de vulgaridades de seu sucessor.
Temer é o Smith que senta à mesa com máquinas e humanos, ele mesmo resultado de acordão de conveniência, com o STF, com tudo. Entende de autopreservação, e é isso que faz: conhecedor dos dois mundos (amigo do magistrado, conselheiro do presidente), intercambia vantagens de lá e cá, como um Caronte com pretensões literárias e refino de salão de bem-nascidos.
Daí que todos na sala se pareçam com o ex-presidente, porque de fato é o que são, fenotípica e ideologicamente: agentes maquinais engenhosamente preservando interesses da Matrix num convescote que faz as vezes de encontro de turma de meia-quatro no qual se discutem os modos de manter tudo como está.
Há mais elementos nesses 59 segundos, é claro. A cor das paredes, as cortinas pesadas em carmim, os candelabros, a gravidade do garçom – único de máscara – em contraste com a bufonaria em redor. E o mais importante: o ponto de vista.
Observem que a câmera assume o lugar de um entre-eles, não se alheia, ela faz parte da cena, comunga de seus valores e atos e faz quem a maneja integrar, por segundos, o mesmo mundo de regabofes finíssimos, franqueando acesso ao interdito, num voyeurismo interclasses.
A câmera, no seu passeio ao rés da mesa, percorre e se detém momentaneamente em cada um apenas o tempo suficiente para que se saiba que todos ali se irmanam física e socialmente. Todos dividem a mesma comida, o vinho, a água, os talheres de prata, numa santa ceia do topo da pirâmide. Riem da mesma piada. É o mundo privado descortinado – as cortinas estão de fato abertas, e o conteúdo da cena, impróprio, vaza para as redes, o novo espaço público, exatamente para que escandalize e também divirta em igual medida.
Nenhum dos presentes se envergonhará do que disse ou fez na peça de vídeo de menos de um minuto, porque, na prática, nenhum deles considera ter feito ou dito nada.
Repasso cena a cena, os seus 59 segundos de puro divertimento talhado numa chave gestual gongórica e vazado numa cartela de cores do ancien régime.
Quadro a quadro, o vídeo exala ar de fim de festa, embora, a julgar pelos pratos vazios e o andamento acelerado dos garçons, presuma-se que a refeição não tenha sido ainda servida. Um baile da Ilha Fiscal remasterizado para novas plataformas e com novos personagens desbloqueados depois do mezzo golpe do 7 de setembro, como se tivéssemos avançado de fase. E agora os vilões fossem outros e outros também os desafios.
As roupas no mesmo tom de azul, sem gravatas, denotam informalidade, mas uma informalidade passadiça, quase inadequada, como se compradas na mesma loja pelo mesmo empregado. Note-se o impróprio da situação: algo ali se desenrola fora do quadro, da tela, como um conto macabro, um fundo falso sob o qual talvez encontremos o cadáver de algum dos milhares de mortos pela Covid.
Do que riem os convivas? Esse riso por si é pornográfico, obsceno, num duplo sentido: o da falta de pudor, riso desavergonhado e contrário ao contexto de luto, mas também porque “oposto à cena”, conforme sua raiz etimológica: o que “não se pode levar ao palco por atentatório à moral”.
Segundo, percebam o mesmo Temer replicado como um doppelgänger ad infinitum. Temer, como o agente Smith de “Matrix”, cria a sensação de que se está diante da mesma entidade, e faz sentido que seja assim.
Smith é uma espécie de falha da máquina, um duplo de si mesmo, um constructo que se autonomiza e rebela contra o sistema, passando a impor o próprio regime, o que ameaça tanto humanos quanto as inteligências postiças, que selam uma aliança provisória para combatê-lo.
Ora, o que faz Temer? Agencia uma “pax” precária entre um presidente abertamente golpista, uma máquina de cuspir e horrorizar, e um ministro do Supremo, entre Executivo e Judiciário, ou pelo menos é assim que deseja que todos interpretem esse arranjo. Como um milagre da articulação, um feito do intelecto desse homem cujos modos melífluos ornavam o noticiário até poucos anos atrás, sendo substituídos pelos disparates e show de vulgaridades de seu sucessor.
Temer é o Smith que senta à mesa com máquinas e humanos, ele mesmo resultado de acordão de conveniência, com o STF, com tudo. Entende de autopreservação, e é isso que faz: conhecedor dos dois mundos (amigo do magistrado, conselheiro do presidente), intercambia vantagens de lá e cá, como um Caronte com pretensões literárias e refino de salão de bem-nascidos.
Daí que todos na sala se pareçam com o ex-presidente, porque de fato é o que são, fenotípica e ideologicamente: agentes maquinais engenhosamente preservando interesses da Matrix num convescote que faz as vezes de encontro de turma de meia-quatro no qual se discutem os modos de manter tudo como está.
Há mais elementos nesses 59 segundos, é claro. A cor das paredes, as cortinas pesadas em carmim, os candelabros, a gravidade do garçom – único de máscara – em contraste com a bufonaria em redor. E o mais importante: o ponto de vista.
Observem que a câmera assume o lugar de um entre-eles, não se alheia, ela faz parte da cena, comunga de seus valores e atos e faz quem a maneja integrar, por segundos, o mesmo mundo de regabofes finíssimos, franqueando acesso ao interdito, num voyeurismo interclasses.
A câmera, no seu passeio ao rés da mesa, percorre e se detém momentaneamente em cada um apenas o tempo suficiente para que se saiba que todos ali se irmanam física e socialmente. Todos dividem a mesma comida, o vinho, a água, os talheres de prata, numa santa ceia do topo da pirâmide. Riem da mesma piada. É o mundo privado descortinado – as cortinas estão de fato abertas, e o conteúdo da cena, impróprio, vaza para as redes, o novo espaço público, exatamente para que escandalize e também divirta em igual medida.
Nenhum dos presentes se envergonhará do que disse ou fez na peça de vídeo de menos de um minuto, porque, na prática, nenhum deles considera ter feito ou dito nada.
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