Pular para o conteúdo principal

Postagens

Café da manhã

  A mãe está feliz porque súbito os filhos chegam um a um, todos novamente reunidos pela primeira vez desde o início da pandemia. Saímos de casa e agora dividimos a mesa no café da manhã. Ocupo o braço do sofá, a irmã a soleira da porta, o pai a quina da mesa, o irmão está a caminho, mas deve chegar logo, vem de moto, de onde não se sabe, mas avisou pelo Whatsapp que não demora mais e que o aguardássemos para o café. Mas antes, mesmo quando eu não tinha chegado ainda, a mãe já se servira do bule e do pão e do cuscuz e do queijo, é seu aniversário e pode ditar as regras, fazer como quer, banquetear-se sem leis ou preocupações com diabetes ou a pressão alta, mas sem exageros, eu lhe direi depois, no que ela assentirá sem tanta confiança. Bato na porta, toco a campainha, entro desajeitado, o pai me abraça antes da mãe, que está sentada e se surpreende, de modo que podemos considerar ter cumprido o objetivo de não levantar qualquer suspeita quanto à chegada de cada irmão. Um do leste...

Crônica da vacina

  A Pfizer, muito carente, insistiu enquanto pode. Escreveu emails desesperados nos quais suplicava por uma palavra, qualquer que fosse, mas que o destinatário se dignasse a responder, do contrário quedaria doente sabe-se lá de que moléstia, ela previa. Mas do outro lado havia um interlocutor insensível para o que ela tivesse a dizer, de maneira que se passaram 30, 40, 50 mensagens, até chegar a 80, quando ela se convenceu de que bastava e deu tudo aquilo por encerrado: havia se cansado, não restava nada, era o fim. Quando ele finalmente a procurou, muitos meses depois, Pfizer já estava noutra, imunizada daquele vírus que a deixara como que cega para todo o corpo que não fosse o dele. A vida tinha se aberto, e ela agora passava de mão em mão, de braço em braço, no que era feliz, muito feliz. Com a Janssen foi pior. Jamais se prestou a qualquer resposta, simplesmente desapareceu, e ele sentiu na pele o que era abandono. Disse que viria, mas não veio, anunciou que chegaria, mas não c...

PCR

  Que temos sonhos estranhos na pandemia, disso já sabemos todos desde pelo menos março do ano passado, quando, às voltas com as primeiras notícias e os sinais iniciais de recolhimento domiciliar sem data para retorno, passamos a uma rotina de sobressaltos. O assombro logo se tornou o “novo normal”, essa expressão detestável que empregamos para designar o novo, duplamente falha porque incapaz de domesticar o que se anunciava e de advertir para a enormidade do desafio que vinha. Era como tapar um sol com a peneira. De modo que, já naquele momento, sonhávamos com esquisitices, a madrugada sobrelevada por imagens que antes não nos visitavam. Eu mesmo cheguei a anotar algumas delas, mas logo me desfiz, como de resto com tudo, deixei de lado e as tomei como bobagem. Hoje me arrependo, queria saber com o que me ocupava enquanto dormia. Ontem, por exemplo, sonhei fazendo um teste PCR, esse em que enfiam uma sonda nariz adentro, causando uma sensação incômoda, como posso imaginar, mas nece...

Consulta

  Hoje na médica passei um tempo calado tentando lembrar quando tinha sido a última vez que havia ido a um consultório, mas desisti porque de fato fazia bastante tempo, de maneira que me senti adormecer numa viagem a outra era geológica. Não sei se um clínico geral ou dentista ou dermatologista, porque houve esse momento em que os cabelos estavam caindo num ritmo que eu julgava acelerado mesmo para os padrões de quem perde cabelos desde muito jovem e se acostumou a vê-los se juntar no ralo do banheiro ou sobre o tampo da mesa, dentro de um livro. A médica perguntou então como eu estava, eu respondi que não sabia, e de fato era uma resposta sincera, eu não faço a menor ideia de como esteja, embora me sinta bem, nada pode assegurar, senão um exame minucioso, que tudo se passe nos conformes, que a autoimagem se ajuste ao corpo, que o corpo em si exista como eu o imagino. Ela disse que pessoas como eu, que não vão médico, costumam supor que estão bem, que têm uma saúde de ferro, e o mo...

Aniversário

No dia do meu aniversário de 41 anos, acordei achando que estava no Titanic prestes a afundar. Não é uma figura de linguagem, tampouco exagero retórico. Parte da casa estava submersa. Enquanto dormíamos, um vazamento no banheiro fizera a água rapidamente se espalhar pelo apartamento, chegando também ao quarto da minha filha. Primeiro, ouvi gotas caindo a intervalos regulares, depois mais rapidamente e finalmente o jorro encorpado. Ainda entre sono e vigília, supus que minha esposa lavasse as mãos, mas era uma da manhã. Não lembro de que tivesse insônia e andasse pelos corredores com desejos de asseio em meio à madrugada, então descartei essa possibilidade, o que me deixou ainda mais preocupado. Levantei de um salto. Dei com a água já a meio caminho da sala, como uma visita inesperada, o que deve ter acionado em mim um instinto de proteção ao qual eu ainda não havia precisado recorrer desde que me tornei pai. A partir daí, agi como um marinheiro a quem fora dada a missão de impedir que ...

O escritor promissor

  O escritor promissor fabula mundos em desajuste, escolhe cada palavra e talha as frases como artesão cuja graça e rigor são por si um elemento que torna sua arte invejável e parte indissociável da ideia, concebida muito tempo atrás, de que ele seria para sempre um autor de quem se espera mais do que meras noveletas ou histórias melífluas e sem cor, mas o grande romance nacional, a narrativa no centro da qual se processem os maiores dramas e se vislumbrem os impasses da criação. Ocorre que, nas últimas duas décadas, o escritor promissor vem falhando sempre, surpreendendo pela falta de surpresa com que suas obras se revestem, frustrando sucessivamente a expectativa depositada em seus livros, o que, miraculosamente, não faz arrefecer a certeza quase esotérica de que se trata realmente de um escritor promissor. Como se por efeito inverso, o fato de que não cumpra o que se supõe que ele prometeu apenas fortalece essa promessa, que se renova a cada novo livro cuja leitura não entr...

A praia

  Decidimos ir à praia já muito tarde, quase uma hora, uma decisão inesperada que, no entanto, se mostrou a melhor para o domingo, para este domingo. Estávamos sentados na sala assistindo à final de Roland Garros, alguém de repente falou sobre o sol, a palavra ficou quicando no saibro enquanto a bola verde saltava de um lado para outro da quadra, os atletas num esforço audível de superação de suas debilidades para se impor e vencer, um ambiente sobretudo de tensão. E o sol atravessado sobre a ideia de uma partida de tênis disputada a centenas de quilômetros daqui, quina de continente de onde partem esses cabos submarinos que se conectam com o mundo mas cujo fluxo eu não sei como funciona, como opera na realidade. A praia – sim, a ideia da praia rondando agora o jogo, ocupando os espaços. Vamos, dissemos uns aos outros sem dizer de fato, apenas levantando do sofá num instante, o que fez com que cada um fosse providenciar tudo de que precisa para ir à praia. É possível que tenha lemb...