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Aniversário

No dia do meu aniversário de 41 anos, acordei achando que estava no Titanic prestes a afundar. Não é uma figura de linguagem, tampouco exagero retórico. Parte da casa estava submersa. Enquanto dormíamos, um vazamento no banheiro fizera a água rapidamente se espalhar pelo apartamento, chegando também ao quarto da minha filha. Primeiro, ouvi gotas caindo a intervalos regulares, depois mais rapidamente e finalmente o jorro encorpado. Ainda entre sono e vigília, supus que minha esposa lavasse as mãos, mas era uma da manhã. Não lembro de que tivesse insônia e andasse pelos corredores com desejos de asseio em meio à madrugada, então descartei essa possibilidade, o que me deixou ainda mais preocupado. Levantei de um salto. Dei com a água já a meio caminho da sala, como uma visita inesperada, o que deve ter acionado em mim um instinto de proteção ao qual eu ainda não havia precisado recorrer desde que me tornei pai. A partir daí, agi como um marinheiro a quem fora dada a missão de impedir que ...

O escritor promissor

  O escritor promissor fabula mundos em desajuste, escolhe cada palavra e talha as frases como artesão cuja graça e rigor são por si um elemento que torna sua arte invejável e parte indissociável da ideia, concebida muito tempo atrás, de que ele seria para sempre um autor de quem se espera mais do que meras noveletas ou histórias melífluas e sem cor, mas o grande romance nacional, a narrativa no centro da qual se processem os maiores dramas e se vislumbrem os impasses da criação. Ocorre que, nas últimas duas décadas, o escritor promissor vem falhando sempre, surpreendendo pela falta de surpresa com que suas obras se revestem, frustrando sucessivamente a expectativa depositada em seus livros, o que, miraculosamente, não faz arrefecer a certeza quase esotérica de que se trata realmente de um escritor promissor. Como se por efeito inverso, o fato de que não cumpra o que se supõe que ele prometeu apenas fortalece essa promessa, que se renova a cada novo livro cuja leitura não entr...

A praia

  Decidimos ir à praia já muito tarde, quase uma hora, uma decisão inesperada que, no entanto, se mostrou a melhor para o domingo, para este domingo. Estávamos sentados na sala assistindo à final de Roland Garros, alguém de repente falou sobre o sol, a palavra ficou quicando no saibro enquanto a bola verde saltava de um lado para outro da quadra, os atletas num esforço audível de superação de suas debilidades para se impor e vencer, um ambiente sobretudo de tensão. E o sol atravessado sobre a ideia de uma partida de tênis disputada a centenas de quilômetros daqui, quina de continente de onde partem esses cabos submarinos que se conectam com o mundo mas cujo fluxo eu não sei como funciona, como opera na realidade. A praia – sim, a ideia da praia rondando agora o jogo, ocupando os espaços. Vamos, dissemos uns aos outros sem dizer de fato, apenas levantando do sofá num instante, o que fez com que cada um fosse providenciar tudo de que precisa para ir à praia. É possível que tenha lemb...

Vale este

  Gosto de receber e-mails cujo título é “vale este”, que normalmente se seguem a outros intitulados “versão final” e antecedem aqueles que se chamam, num tom quase desesperado, “vale este mesmo” ou VALE ESTA VERSÃO FINAL, a caixa alta denotando explicitamente que o provisório agora é definitivo, no que incorre, novamente, no engano de supor que qualquer ponto final da escrita do artigo ou da tese ou do que quer que seja signifique por si o fechamento da história. De modo que mesmo o “vale este” que inaugura essa comunicação entre duas pessoas, normalmente um orientador e um orientando, é um ato de fé, um pedido de suspensão da descrença do destinatário, que teria de aceitar ingenuamente que apenas essa mensagem ou essa versão do escrito é válida, e não a que levou a ela, ou seja, o seu rascunho. Afinal, por que descartar o ensaio do definitivo se podemos tomar como parte desse VALE ESTE todas as tentativas e erros colecionados no processo, adiando por fim esse momento no qual decr...

Dicas de mal-estar

  Levar mais do que meia hora num streaming e terminar sem escolher qualquer filme, disso resultando a sensação de fracasso, primeiro pelo tempo perdido numa demora que poderia ter sido abreviada não fosse essa insistência descabida na procura por algo que não encontraremos. Depois pela certeza impalpável, inespecífica, segundo a qual há qualquer coisa acontecendo longe dali, um programa que não estamos vendo, uma atração feita sob medida para nós e que, no entanto, não existe, não está lá, é fruto de um tipo de pensamento fora de qualquer razoabilidade porque se fundamenta na sensação de que fomos deixados de fora de uma experiência coletiva. O medo de que não tenhamos a senha para entrar na festa das redes superando desde já os códigos pessoais, os gostos e preferências. Daí, meia hora depois, de antemão derrotados mas renitentes, temos três alternativas: desligar a TV, reprisar um filme qualquer ou apostar numa péssima série cujos dez minutos iniciais provam cabalmente não merec...

Aceleração do tempo

  Não entendo a obsessão atual por acelerar o tempo, torná-lo tão adiantado a ponto de perdê-lo. Seja com o áudio do Whatsatpp, o vídeo da ioga ou um podcast, a pressa é uma realidade. A pergunta é: pra que mesmo? Descarto de partida a economia. Afinal, essa fração de segundos amealhada resulta em quase nada, o ganho é tão insignificante que teria alguma valia apenas se tivéssemos de ouvir centenas de milhares de minutos de áudio por dia. Do contrário, acelerar não representa qualquer vantagem numérica, salvo estar mais rapidamente desembaraçado da obrigação de ouvi-lo até o fim. Descartada essa possibilidade, o que sobra é a atenção. Embora desatentos na maior parte do tempo ou mergulhados em atividades cuja exigência de concentração é superficial, encaramos a necessidade de acompanhar um áudio sem avançá-lo como uma tarefa maçante, uma verdadeira tortura. E não estou falando daquela propaganda horrível do Kwai que parece que nunca vai acabar ou de um depoimento de Osmar Terra. Es...

Roupa de sair, roupa de ficar

  Já não faço distinção entre roupa de casa e roupa de sair, tudo se converteu nesse “dress code” indiscernível, a mesma modalidade de vestuário que é uma síntese da vida nem totalmente doméstica, nem inteiramente trajada para o trabalho. A roupa então sendo essa tradução mais bem acabada do estado intermezzo das coisas, que não se definem por nada, pelo contrário, transitam nessa zona de ambiguidade em que tudo carrega uma porção do seu verso. Para citar um exemplo. Outro dia fui à mercearia comprar pão. Sem que o percebesse, usava uma camisa que costumava utilizar apenas pra trabalhar. Tenho por ela carinho, ou costumava ter. Quando me vi separando tomates e cebola de um lado e abraçando uma bandeja de ovos do outro foi que entendi que mentalmente era como se estivesse pronto para sair de casa com destino a outro lugar que não a bodega vizinha. O exato oposto também já ocorreu. Estava numa live da firma usando um calção que só visto para dormir, uma dessas peças que vão sobrando ...