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Caderno do esquecimento

Anoto tudo que esqueço, cada pequeno acontecimento, o mínimo revés ou contratempo. Tenho fixação pelo gesto suspenso, o ato que falha, a falta, o elemento que se extravia. Por isso o registro paciente do que não há, a anotação deliberada daquilo que tardou. Uma escrita que retrocede, não avança, quando muito gira sobre o próprio eixo, como planta que nunca se desenraíza e vento represado. Lembro de ainda menino fazer a caligrafia. Desenhava a letra, caprichava a cada curva da vogal ou consoante, a mãe ao lado mantendo a seu alcance também um caderno no qual ia delineando sua escrita, que eu tentava imitar, sem conseguir. Capa preta, impressão de que encerrava ali uma vida que se recusava a compartilhar comigo. Segredos, sim, mas por que deixá-los à vista? Eu não sabia. Tampouco a mãe dizia, ao final guardava na cômoda ou o carregava consigo quando ia ao centro da cidade, de onde passava horas para voltar. Lembro de escrever: o que escreve a mãe? Era uma brecha que tentava ocupar, o esp...

Interceptor oceânico

Outro dia publiquei uma foto de pôr do sol na praia enquanto esperava na fila da sorveteria. Uma imagem convencional, nada que outras não tivessem. Não estava ali pelo passeio, mas pelo sorvete mesmo. Quando me virei, o céu estava matizado de violeta, laranja e azul, como se alguém tivesse esbarrado no tinteiro em cima da mesa e as colorações se misturado numa tela imaginária ao cair. Nada poético, apenas expressão de uma certa ideia de aleatoriedade com um resultado bonito que despertava curiosidade tanto pela extravagância da combinação quanto pela intuição do caminho que o artista seguira até ali. Foi só depois de olhar a foto pela segunda vez que reparei no monumento ao fundo, um obelisco inclinado em cuja sombra, quase quarenta anos atrás, eu fui carregado nos braços da minha mãe, que apontava para ele e tentava inutilmente explicar a uma criança por que um cigarro metálico imenso fora colocado no meio do calçadão e o que esse episódio poderia significar. Embora não entendesse abs...

BBB da rejeição

Como é grande a tentação de extrair do programa televisivo uma lição ou aprendizado qualquer, faço minha tentativa. Primeiro, foi uma edição em que predominou a rejeição. Ora, o gaiato há de perguntar: num jogo de eliminação e choque de egos, nada mais natural do que rejeitar, correto? Não se uma das participantes foi banida com o maior percentual da história da atração, e mesmo a campeã acabou por se tornar ela mesma rejeitada nas redes, por motivos vários, da suposta chatice ou inconveniência como traço de personalidade até o hipotético uso de estratégias digitais duvidosas por sua torcida, acusação que chegou às raias do delírio na véspera da decisão. Embora não seja um douto consumidor de BBB, tenho a idade a meu favor. E não lembro de outro ano, desde sua estreia, em que os jogadores tenham sido tão sistematicamente rejeitados e suas ações, escrutinadas e reviradas pelo avesso, com repercussões que não se limitavam às quatro linhas da TV, estendendo-se como uma maldição a familiar...

À irmã a quem não pude amar

  Eu tive uma irmã. Está escrito numa bíblia antiga que minha mãe comprou quando ainda éramos crianças, de modo que o livro tem praticamente a minha idade, ou talvez seja mais velho. É um volume robusto, de letra graúda, com reproduções de pinturas renascentistas, mas cuja capa estragou-se com o tempo, e por isso o trouxe para casa, a fim de restaurá-lo e guardá-lo comigo, como artefato capaz de ligar minha história à de minha mãe e, de alguma maneira, à do restante da família, como um elo artificioso que tenho de fixar para que tudo não se perca em vazio, para atenuar essa sensação de que a deriva é nossa origem comum, e não uma casa ou cidade. Na folha de rosto da bíblia, no local destinado a anotações pessoais, a mãe escreveu nossa data de nascimento, nome e filiação, além da data de casamento: setembro de 1979. Cláudia nascera em 1º de maio de 1981. Eu não sabia ou não recordava que hoje era o seu aniversário. A irmã faria 40 anos, igualando-se a mim por um período curto que ta...

Dividindo apê com o carro

 Foi com indisfarçável descrença que recebi a notícia de que, num futuro próximo, o cearense endinheirado estaria em condições de dividir o apartamento não só com o amigo da faculdade, com um parente, com a namorada ou o namorado, com a esposa e os filhos, com a samambaia e os gatos, mas também com o próprio carro. Objeto hipervalorizado e investido de uma áurea fálica indissolúvel, o carro, em vez de deixado de lado na garagem, no térreo do prédio ou ao relento, agora estaria ao lado, como uma peça de arte ou totem moderno da vida urbana. Seria mais de casa do que as empregadas domésticas, que já são quase da família e até dormem no trabalho, não é mesmo? Mas o carro na sala faz da casa uma garagem ou da garagem uma casa? Eis a primeira dúvida existencial que me surgiu, uma questão ociosa e meramente especulativa, por duas razões: não tenho R$ 4 milhões e, se tivesse, não gastaria assim. E mal consigo suportar a ideia de uma bicicleta no corredor, de modo que tenho preferido deixá...

O virtuoso

De repente, mas talvez não tão de repente assim, o virtuosismo moral virou pedra de toque das relações nas redes sociais, esse espaço onde cada usuário acorda todo dia disposto a responder a seguinte pergunta antes do primeiro gole de café: por que me ufano de mim mesmo? E, nessa gincana do espírito, tudo se converte em motivo para autocelebração, que, por sua vez, significa a rejeição de um outro a quem o virtuoso se opõe e cujos pecados pretende explicitar, seja com o próprio exemplo, seja atacando-os diretamente. Afinal, não se festeja o próprio ego à toa, mas sempre em relação a outrem, com quem se estabelece uma demarcação e se institui uma fronteira. É-se virtuoso não por si mesmo, mas porque alguém não é. O virtuoso, por razões óbvias, nunca se peja de jogar confetes e atrair o holofote para a própria virtude, fazendo-a maior do que de fato é, sovando-a dia a dia e engordando suas dimensões, como um Godzilla do caráter, um King Kong do bom exemplo. Tudo em suas mãos se molda com...

Naturalizar o vácuo

Alguém disse que é preciso “naturalizar o vácuo”, ou seja, a resposta não dada não de modo deliberado, mas não intencional, resultado do acúmulo de demandas, de mensagens em múltiplas plataformas por 24 horas, num diálogo que não se interrompe em qualquer momento do dia. Então me veio à cabeça que hoje estamos sempre devendo algo a alguém, por todo canto levamos essa agoniada sensação de que temos de responder e dar continuidade a alguma comunicação cujo início já perdemos, mas que segue suspensa, numa aflitiva lacuna que fica guardada num cantinho do juízo. Um retorno, uma confirmação, seja de email ou mensagem de Whatsapp, no Instagram ou Facebook, um comentário numa caixa, uma ligação não atendida para a qual ainda não temos devolutiva à altura e por isso a estudamos mais um pouco, mas é justo esse "pouco" que causa estridência e produz ruídos. Não há tempo para espera. O fato de que exista um sem número de modalidades de interlocução apenas potencializa às alturas també...