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O virtuoso

De repente, mas talvez não tão de repente assim, o virtuosismo moral virou pedra de toque das relações nas redes sociais, esse espaço onde cada usuário acorda todo dia disposto a responder a seguinte pergunta antes do primeiro gole de café: por que me ufano de mim mesmo? E, nessa gincana do espírito, tudo se converte em motivo para autocelebração, que, por sua vez, significa a rejeição de um outro a quem o virtuoso se opõe e cujos pecados pretende explicitar, seja com o próprio exemplo, seja atacando-os diretamente. Afinal, não se festeja o próprio ego à toa, mas sempre em relação a outrem, com quem se estabelece uma demarcação e se institui uma fronteira. É-se virtuoso não por si mesmo, mas porque alguém não é. O virtuoso, por razões óbvias, nunca se peja de jogar confetes e atrair o holofote para a própria virtude, fazendo-a maior do que de fato é, sovando-a dia a dia e engordando suas dimensões, como um Godzilla do caráter, um King Kong do bom exemplo. Tudo em suas mãos se molda com...

Naturalizar o vácuo

Alguém disse que é preciso “naturalizar o vácuo”, ou seja, a resposta não dada não de modo deliberado, mas não intencional, resultado do acúmulo de demandas, de mensagens em múltiplas plataformas por 24 horas, num diálogo que não se interrompe em qualquer momento do dia. Então me veio à cabeça que hoje estamos sempre devendo algo a alguém, por todo canto levamos essa agoniada sensação de que temos de responder e dar continuidade a alguma comunicação cujo início já perdemos, mas que segue suspensa, numa aflitiva lacuna que fica guardada num cantinho do juízo. Um retorno, uma confirmação, seja de email ou mensagem de Whatsapp, no Instagram ou Facebook, um comentário numa caixa, uma ligação não atendida para a qual ainda não temos devolutiva à altura e por isso a estudamos mais um pouco, mas é justo esse "pouco" que causa estridência e produz ruídos. Não há tempo para espera. O fato de que exista um sem número de modalidades de interlocução apenas potencializa às alturas també...

Só rico lê

Verdade que só rico lê? Me fiz essa pergunta logo pela manhã, depois de contrastar os boletos e os livros, ambos se acumulando em proporções bíblicas na estante da sala. Alguma coisa estava errada com a teoria do Guedes, o ministro da Economia que se notabilizou por previsões que não se cumpriram. Das duas, uma: ou era um pobre que não lia ou um rico que lia. Como tenho livros e leio, mas sigo desafortunado no que diz respeito ao contracheque e minha proximidade com o PIB, fiquei confuso. Insatisfeito com exemplo tão prosaico que contradizia a versão oficial do governo, decidi puxar pela memória os ricos que conheço. Não são muitos. Uma cunhada, o primo que se casou com uma mulher cuja família já foi rica, mas hoje não é. O dono do mercadinho ao lado do prédio. Também lembrei da família de um proprietário de confecção no bairro antigo da infância. Eram ricos para os padrões da época e do lugar, mas não ricos na exata acepção do termo: usar Crocs, camisa com número estampado da Hollis...

Lockdown à cearense

Cearense não entende lockdown, e não é porque se trata de palavra inglesa, porque no estado temos a maior concentração de falantes do idioma fora dos EUA e da Inglaterra. Fica em Sobral, a poucos quilômetros da capital, terra de gente escolada onde todo mundo já nasce dotado de um repertório lexical de estudante do último semestre da Casa de Cultura Britânica. Molecagem à parte, as dificuldades com o termo não vêm de sua origem estrangeira, tampouco da prosódia tortuosa, que faz a língua do gentio se dobrar numa ginástica exaustiva. O problema está no DNA do nativo mesmo, avesso a qualquer ideia de confinamento, clausura, de tempestiva vedação de um fluxo, de proibição irrecorrível. Um caráter que rejeita essas noções de "não pode", "não faça", "não vá" – há sempre quem acha que pode, que faz e que vai, mesmo no pior momento de uma doença desgraçada. Cearense entende que lockdown é um jeito de parar tudo, menos a conversa na calçada. Sabe que é medida extr...

Está ruim, vai piorar

Tínhamos no início de tudo essa pretensão besta de que sairíamos melhores e que a pandemia seria oportunidade de um aprimoramento pessoal, algo como uma especialização em humanidades compulsória. E o que vemos é o contrário. Desandamos como gente, tudo em redor é prova de que os mortos não interessam, sejam uma dezena ou quatro mil. E essa suposição de um ano atrás parece agora não apenas infantil ou ingênua, mas um traço constitutivo de uma certa maneira de enxergar uma praga que traria consequências inexoráveis para todos, é verdade, mas sobretudo para uns, os mais vulneráveis, esses para os quais a onda que sobreviria não era uma micareta cultural, uma gincana do espírito, um recreio para os adultos ilustrados. De maneira que o espírito segundo o qual o confinamento seria como essa colônia de férias escolares é hoje não o erro, não uma falsa impressão ou demonstração do equívoco, mas o decalque, a comprovação de que, desde lá, março de 2020, a doença teria efeitos diferentes e se r...

Rastro

Apenas hoje percebi com mais clareza o rastro deixado pelas pernas da cadeira no piso de taco do escritório onde trabalho, um cômodo abarrotado de livros a que chamo ocasionalmente de quarto do meio e noutras, quando quero soar como alguém que tem um propósito, apenas de biblioteca. Ao levantar, arrasto a cadeira para sair e a devolvo a seu canto, o que produz esse trilho esbranquiçado, uma cicatriz no chão que foi se aprofundando à medida que o tempo de confinamento passava de um mês a dois e depois a três e finalmente seis e um ano. Hoje, ao entrar no quarto de passagem para o banheiro, porque o calor é insuportável e toda hora temos de ir ao chuveiro, notei o que tomei inicialmente como sujeira, mas que não saía com a vassoura. É uma das inúmeras marcas da casa durante esse tempo. Cito outra: a parede descascada da sala, projeto malogrado de uma pintura que comecei mas da qual desisti quando a tinta foi se soltando aos bocados, em nacos que se desprendiam como a pele dessas criatura...

Produtividade

 Hoje levantei mais cedo, separei tudo que tinha pra fazer, tomei café, deixei de um lado livros pra estudar e do outro cadernos para anotar, removi coisas que não usaria de imediato, liguei o computador, abri abas do navegador, tentei me limitar ao que era estritamente necessário, cliquei no que era apenas primordial. Acionei o processador de texto, escrevi uma ou duas frases, parei, tomei mais café, pensei que não é bom tomar tanto café assim, e ainda no meio de uma pandemia, e sobretudo num dia como este 31 de março, mas aí já era tarde e eu tinha bebido três xícaras do café que eu mesmo faço, três colheres de pó e duas de açúcar para um quarto de água na panela, de modo que quase sempre resulta num café mais forte, o que me deixa distraído em vez de concentrado, a atenção fisgada por qualquer movimento da casa, a cortina que estala, a geladeira que bipa, o gato que ronrona. Então coloco fones de ouvido, mas logo essa invasão auricular começa a incomodar, tiro os fones, fecho as...