Verdade que só rico lê? Me fiz essa pergunta logo pela manhã, depois de contrastar os boletos e os livros, ambos se acumulando em proporções bíblicas na estante da sala. Alguma coisa estava errada com a teoria do Guedes, o ministro da Economia que se notabilizou por previsões que não se cumpriram.
Das duas, uma: ou era um pobre que não lia ou um rico que lia. Como tenho livros e leio, mas sigo desafortunado no que diz respeito ao contracheque e minha proximidade com o PIB, fiquei confuso.Insatisfeito com exemplo tão prosaico que contradizia a versão oficial do governo, decidi puxar pela memória os ricos que conheço. Não são muitos. Uma cunhada, o primo que se casou com uma mulher cuja família já foi rica, mas hoje não é. O dono do mercadinho ao lado do prédio.
Também lembrei da família de um proprietário de confecção no bairro antigo da infância. Eram ricos para os padrões da época e do lugar, mas não ricos na exata acepção do termo: usar Crocs, camisa com número estampado da Hollister, frequentar o Colosso etc.
Na casa deles tinha livros? Não recordo, mas, durante a pandemia, apareciam nas lives com moldura de biblioteca, o que logo os caracteriza nesse perfil que o governo insiste em fazer crer: o rico como leitor, o rico frequentador de bienais e saraus, o rico consumidor de literatura e quejandos.
Pensei mais um pouco, e nenhum nome mais próximo me veio à cabeça, apenas exemplos distantes e incapazes de servir para comprovar ou refutar a tese de que apenas rico lê.
Foi aí que me ocorreu que uma vez cobri um evento na Praça Portugal. Era um domingo quente, bonito. Dia de praia, como se fala em Fortaleza. Ou de shopping, se você é um rico meio cafona.
Todo mundo na praça vestia verde-amarelo e exalava um cheiro que era a mistura de bloqueador solar e perfume caro. Gente branca, os SUVs estacionados. Alguns tinham levado a empregada a tiracolo, trajadas com uniforme alvo, de corte quadrado, visivelmente desconfortáveis.
Eram ricos, via-se. E certamente leitores. Aquela traseira de 4x4 com vidro fumê. Ali cabiam pilhas e pilhas de volumes encadernados, livros de bolso, revistas sobre livros e por aí vai. Quando voltavam de Miami, não traziam na bolsa peças de roupa nem quinquilharias compradas para enfeitar a estante. Malocavam livros.
Mas tinha um problema. Aqueles ricos, que também eram os leitores de livros, defendiam o regime militar, pediam fechamento do Congresso e apoiavam Bolsonaro.
A conta não fechava. Ou o cara lê ou ele defende Bolsonaro. Ou a madame lê Jorge Amado ou apoia a ditadura. Ou o jovem bem-nascido de tez dourada lê Tolkien ou grita “mito” no meio da praça, abraçado com uma bandeira do famigerado fazendo gesto de arminha.
Novamente os conceitos se embaralhavam na minha mente. Porque, embora não conheça muita gente rica, conheço muitos que leem. E leem com esforço, porque empregam parte do que ganham pra comprar livro. Porque livro costuma sair caro no orçamento de qualquer família.
Mas os leitores e as leitoras com quem trato fazem das tripas coração para ter livros em casa, aos montes ou somente em parcas edições. Livros contrabandeados, livros emprestados e nunca devolvidos, como os que meu pai pedia quando era mais jovem e trabalhava num restaurante. E assim foi montando uma biblioteca.
A mesma biblioteca mínima onde descobri mais tarde o que era um livro com uma edição esfarrapada de uma seleta de poemas de Carlos Drummond de Andrade.
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