Pular para o conteúdo principal

Postagens

Elogio da agenda

Gosto de agendas, embora nunca as use de fato. Trazem consigo um projeto de futuro, com todas essas páginas em branco e campos para dados pessoais, frases e trechos de poesia avulsos e dispostos em cada mês, quase uma predição do que virá.  Na escola costumava pedir ao pai que me desse uma agenda, onde anotava diligentemente, naquela letra ainda aprumada, confissões adolescentes. Ensaiava invenções que se perderiam no tempo. Um dia, juntei e joguei tudo fora. Na faculdade, porém, as coisas se inverteriam, e a esse lirismo se seguiu uma fase do engajamento, marcada por agendas de partido político, como as do PSTU, renovadas a cada ano. Se duvidar, tenho ainda hoje uma coleção delas esquecida em algum lugar da casa. Antes de ontem ganhei uma agenda. Fazia tempo que desejava uma, mas ou não atinava para comprar ou julgava desimportante organizar minimamente o tempo, de modo a fatiá-lo e encaixá-lo, nesse exercício de fé que é imaginar o que está para além da esquina. Deixava quase sem...

O dia em que Maradona fez minha vó chorar

  Não o deus, mas o vilão, o responsável por um quase-trauma para a criança de 10 anos que eu era, fã de Careca porque ainda não havia Romário nem 1994. Então, naquele 1990, eu parei ao lado da vó pra ver Brasil e Argentina. A vó era minha parceira de jogo. Vimos as partidas decisivas do Brasil, além das finais, em 1994, 1998, 2002, 2006 e 2010, mas não o Sete a Um. Esse, não, a vó morreu antes. Não passou esse vexame. Hoje penso no que teria dito diante do Thiago Silva chorão e do Galvão catatônico. No começo, porém, nada disso existia. Era apenas o Brasil de 1990. Era Careca, principalmente, o nosso craque. A vó xingava muito vendo TV. Canalha, fdp, pnc, coisas do tipo, uma vulgaridade que contrastava com a figura de vó de desenho da Disney e com outras avós que eu conhecia. Só a minha falava palavrão daquela maneira, um traço que involuntariamente assimilei. Naquele jogo, especialmente, a vó xingou. Muita bola na trave, muito grito de gol engasgado. Nenhum título, evidentemente....

Meu nome é Antonia (2)

De vez em quando, Antonia fugia, abria o portão e perdia-se no bairro, aproveitava uma brecha, a mãe que estivesse cortando a carne ou fervendo o leite, o pai que estava fora, a avó que acompanhava a novena, os irmãos distraídos com brincadeiras e eu deitado no sofá esquentando as tardes com sonhos de cabelos cheirando a creme Neutrox. Eu a via escapar sem dizer nada, primeiro a porta e depois o portão que dava para uma área que meu pai usava para se exercitar. E, finalmente, a grade da rua, mantida sem cadeado por causa do constante ir e vir que demarcava a rotina da casa, a mãe que saía ou a vizinha que entrava, um amigo que chegasse etc. Nessa época, o bairro era um imenso conjunto de casas semelhantes construído décadas atrás para trabalhadores que vinham do interior à capital à procura de vida melhor mas acabavam por se estabelecer tão ou mais precariamente, de maneira que cada residência se distinguia da outra apenas pela cor e às vezes nem isso, num padrão geométrico e de palet...

Menina e papelão

A filha pediu que escrevesse uma história sobre papelão. “Uma menina que brincasse com papelão”, explicou, que fizesse do papelão sua matéria de sonho. Que o tomasse nas mãos e desdobrasse, dele modelando casa, carro, boneca, árvore, sol e também um cachorro. Tive dificuldade, falhei. Não imaginava que pudesse haver outro uso para o papelão, mas daí lembrei que eu mesmo construía cidades de papelão quando criança. Dispunha tudo na sala, ruas, ônibus, prédios, cobria com folha de ofício e então povoava. Estava vivo. Eram caixas de sapato, tubos de creme dental que iriam para o lixo. Coisas assim. Filha, já sei como fazer, respondi, ainda que não soubesse de todo naquele momento, porque agora tenho mais dificuldade de me desincumbir dessas urgências do dia a dia. Como se muito grande para entrar na toca do coelho branco. Careço de mais tempo, mais jeito, um esforço mesmo. Mas funciona, e somente depois começo a fantasiar essa menina às voltas com retalhos de papelão, fragmentos de mundos...

Francisco

  Nessa mesma viagem do meteoro , conheci o Francisco, que pastora uma estátua dia e noite numa cidadezinha do interior do Ceará. Cuida para que não se deteriore, vende quinquilharias e orienta para as rezas. Ocupa-se inteiramente da saúde do santo, cujo nome agora não lembro, mas posso pesquisar e depois volto aqui pra contar melhorzinho, com detalhes. Pois o Francisco, que é sozinho na vida, trepou-se no oco da estátua para pintar a cabeça do santo, a escada quebrou-se e ele passou o dia inteiro suspenso, sem poder descer nem ninguém que o acudisse porque nesse dia o povo da cidade não deu trela ao sagrado e preferiu gastar o tempo com as coisas mundanas, com os pecados. Apenas no dia seguinte apareceu no terreiro uma filha do Francisco que mora por perto e o procurou aflita na casa. Sem dar por ele, foi ao quintal. Como não o achasse, olhou pra estátua e, no alto, estranhou que houvesse um ponto escuro. Era o pai. A história é contada pelo Francisco encostado numa sombra de ár...

Avistamento

       O burburinho, e então os vídeos pipocando nas redes sobre o avistamento de um objeto no céu, testemunhos e rapidamente a conclusão: eram os chineses que invadiam o Brasil. Não era, mas fiz a associação entre o rastro de luz e o meteoro que riscou o estado meses atrás e cujos fragmentos não foram ainda encontrados. Sumiço. Ninguém deu por nada ainda. Dizem que se esfarelou em atrito, desfez-se todo. E lembro que me destaquei de Fortaleza pra serra atrás de caco de pedra caída do espaço, a filha pedindo “pai, traz um pedaço da Lua”. Trago, filha, se achar. Não achei, nem acharia. Diabo de invenção essa de sair no meio do mundo caçando o que se findou. Cheguei a entrar na mata e bater na porta da casa do povo, que, rindo, apontava mil e uma pistas, de pedregulhos dentro de lagoas a outras besteiras que, na hora, não vi que eram pura invencionice. Mas, como na série que eu via quando menino, eu queria acreditar. Por isso nem me importei quando me mandaram esse víd...

Dia do voto

 Voto no mesmo lugar há mais de 20 anos, uma escola de bairro de periferia com muro amarelo e verde descascado ao lado de uma feira, ou a feira é que lhe faz vizinhança, não sei quem chegou primeiro. Escola pública, nota-se logo na entrada e pelo nome, que homenageia um deputado.  Iniciais seguidas de um Carvalho ou Bezerra ou Pereira, esses sobrenomes típicos e sumamente comuns que batizam de hospitais a viadutos. Não tenho mais conexões com o bairro. O bairro inteiro na verdade sumiu e em seu lugar construíram um bairro cenográfico da noite para o dia. Logo, todo mundo que encontrei no domingo é figurante, gente paga para desempenhar seu papel e simular um passado. O vendedor de picolé, o traficante na esquina balançando uma chave de camiseta e boné, o fiscal da sala, o mesário que me olha esquisito como se me conhecesse, mas não me conhece porque ele é um ator que nasceu em 1992 e dirige Uber nas horas vagas. Minha família já foi embora do bairro, mesmo os amigos não estão ...