Pular para o conteúdo principal

Menina e papelão


A filha pediu que escrevesse uma história sobre papelão. “Uma menina que brincasse com papelão”, explicou, que fizesse do papelão sua matéria de sonho. Que o tomasse nas mãos e desdobrasse, dele modelando casa, carro, boneca, árvore, sol e também um cachorro.

Tive dificuldade, falhei. Não imaginava que pudesse haver outro uso para o papelão, mas daí lembrei que eu mesmo construía cidades de papelão quando criança. Dispunha tudo na sala, ruas, ônibus, prédios, cobria com folha de ofício e então povoava. Estava vivo. Eram caixas de sapato, tubos de creme dental que iriam para o lixo. Coisas assim.

Filha, já sei como fazer, respondi, ainda que não soubesse de todo naquele momento, porque agora tenho mais dificuldade de me desincumbir dessas urgências do dia a dia. Como se muito grande para entrar na toca do coelho branco.

Careço de mais tempo, mais jeito, um esforço mesmo. Mas funciona, e somente depois começo a fantasiar essa menina às voltas com retalhos de papelão, fragmentos de mundos, tudo recortado com tesoura sem ponta, dessas que compramos em papelaria e entregamos na secretaria da escola todo começo de ano.

Na cabeça, ruminava a história. “A menina e o papelão.” Penso nas crianças sem brinquedo que, por força, usam-no para distração, arrastando na calçada caixotes espetados com madeira de churrasquinho fazendo as vezes de direção. Inventam o brincar sem meios.

Tenho vergonha, e em seguida vergonha da vergonha, numa cadeia sem fim, porque essa vergonha é autodefesa, anticorpos da classe social que atuam para mitigar qualquer inflamação ou crise de consciência.

Cogitamos gravar um vídeo. Ela me pede que grave instruindo-me a contar e começa: era uma vez uma menina que brincava com o seu papelão. O papelão como algo pessoal, íntimo, a menina relacionando-se com ele de uma maneira que não se relaciona com a Lol Surprise de duzentos reais que compramos e, no dia seguinte, ela perdeu num passeio na casa da avó.

Tudo bem, vamos lá.

O vídeo fica pronto, tem dois minutos. Vejo-o agora no celular. A filha detalha o passo a passo da história. A menina pega o papelão, corta, monta, encaixa, pinta, dobra, e dá por encerrada a brincadeira. Tudo tão fácil. Até que o estoque de papelão acaba e ela implora que compre mais livros porque precisa de mais papelão.

Pra mim, é uma emoção vê-la operar nesse modo de concentração total, a testa levemente franzida. Sou pai dela, orgulho-me. Uma pieguice que a própria filha denuncia rapidamente e com deboche: pai, tá rindo do quê? É só uma caixa.

Eu sei que é. Mas também sei que não é.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d