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Sala de reunião

Olá, pessoal, sejam “todes bem-vindes” à sala, saudou a host da reunião dirigindo-se a todes e a ninguém em especial, ao que foi correspondida por uma onda de murmúrios assentindo à introdução após a qual foi preciso desligar o microfone de todes pela primeira vez entre tantas naquelas próximas duas horas e meia de bate-papo. É com prazer que recebo vocês aqui para partilhar esse afeto vital em tempos de fratura social, um encontro em tempos de desencontros, continua a anfitriã, e é como se lesse uma palestra do Karnal no teleprompter. Antes de começar de fato, quero falar sobre a experiência de reunir aqui uma gente a quem admiro, pessoas cujo trabalho me ajudam a entender o abismo em que estamos, numa urdidura de nexos sempre muito complexa. Franzi o cenho. Detesto “urdidura”, é uma palavra que uso raramente e apenas quando desejo parecer empolado, apelando a esses maneirismos acadêmicos que ganham vida própria e saem por aí se multiplicando feito Gremlin nas salas de reuniões virtua...

Desaterro (3)

A história da família como a da cidade, uma rasura sobre rasura, nela escreveu-se sobre o que já se tinha escrito. Mas é preciso encontrar nesse exercício de exaustão e desaparecimento uma grafia, ainda que seja a história de um findar-se, a história de impor-se a si e aos seus um contínuo renovar-se que é também um morrer atualizado. Na família a morte sempre rondou, os mitos domésticos cercados de casos de dissolução física, escapes e desatinos, um disfarce de onde se veio. Nenhum retorno, apenas partida, um desaterro dia após dia.

Desaterro (2)

Fui encarregado de contar a história da família, reatar um fio que se perdeu muito tempo atrás com a morte dos meus tios e o desaparecimento de uma tia, a morte da avó, a quem perguntava de onde tínhamos saído, de quem descendíamos, se tínhamos uma raiz, uma ramificação que fosse, um pedaço de chão onde se pôs algo a que se pode chamar de origem. Porque era importante pra mim entender que havia começo. Mas é difícil recuperar esses vestígios, retraçar essa errância, narrar a deriva. A família é esquiva, dela sei muito pouco, o avô se evadiu quando pode, meteu-se noutro lugar, noutro estado, de lá não se tem sinal de vida ou morte, embora haja mais razões para crer em sua morte do que na vida. Poucos escritos, cartas, álbuns, quase nenhum rastro, fotografias atiradas ao lixo, coleções de cartas perdidas, registros extraviados. Tudo como se houvesse um esforço deliberado de apagar-se, a família sem retrato na parede, sem patriarca, sem matriarca, um ajuntamento de pessoas cujo elo mais f...

Desaterro

O ato de desfazer o malfeito, reparar o trabalho operado em prejuízo de um coletivo, reverter o movimento das pás de máquinas e usá-las em favor de um reassentamento, devolvendo à praia o que lhe falta, a areia extraída de novo posta em solo, o ângulo de entrada no mar atenuado, a descida suavizada. Tudo isso é desaterro, é fazer bem o que se fez ao revés, ainda que com boas intenções ou talvez não tão boas assim. Imagino uma campanha na cidade, pessoas às voltas com os mais diferentes tipos de equipamento a fim de recuperar o que foi tirado, reaver aquele sentido de mar e de praia que a muito custo se foi consolidando, rejeitar essa imagem de praia-estacionamento ou praia-shopping, aonde se vai para o consumo dos bens, dos cardápios e das quinquilharias, e não ao descanso e à escapada do frenesi visual.

Livros que fogem

Passo a manhã à procura de um livro. Reviro lombadas, afasto colunas inteiras, separo antigos de novos, mexo com o que estava assentado há meses ou anos, sujo as mãos com poeira e depois as lavo, mas se conservam ásperas mesmo depois de enxaguá-las com sabonete. Não o encontro, embora tenha certeza de que está aqui. Talvez na sala, no quarto ao lado. É possível que o tenha emprestado, que o tenham roubado? Tento lembrar de seus contornos, o título é uma pista, mas o nome é insuficiente, é material por demais resvaladiço. Num labirinto, o nome é de pouca valia. E o quarto tem se tornado como um círculo dentro de outro dentro de outro, espiralando-se ao infinito. Ultimamente tenho perdido mais do que posso lembrar, então maldigo a desordem do quarto. Nenhuma disciplina ordena esses livros, nenhum protocolo de arrumação, cada qual disposto como convém, solto ao acaso, deixado de costas ou frente à própria sorte, enfiados em caixas remetidas por mim mesmo vindas de outro mundo. E aí, qua...

Do Leblon a Jeri: o Brasil barraqueiro

O que é o barraco senão a política por outros meios? Sua natureza, uma altercação física e/ou verbal, é a da relação conflituosa cujo desfecho é não raro as vias de fato, que, por sua vez, são por si mesmas um mistério. Afinal, por que se diz “de fato” de algo como as vias, que não admitem uma acepção assim tão preto no branco? Sabe-se lá. Como solução política, portanto, o barraco tem se mostrado cada vez mais frequentemente uma chave resolutiva para o Brasil de hoje, barraqueiro por excelência. É como uma resposta catártica, uma teatralização violenta do cotidiano em que os impasses do país se encenam à luz do dia ou da noite, mobilizando as paixões e os atavismos nacionais mantidos na camada mais superficial da pele tupiniquim. Seja nas áreas comuns dos condomínios, nas pousadas litorâneas ou na rua, o brasileiro recorre ao expediente mesmo se não esgotadas todas as alternativas à mão civilizada: a conversa, o silêncio, a intermediação cautelosa e bem-vinda de outrem, o simples dar ...

Adivinhações

Ultimamente penso por palavras, vocábulos soltos em torno dos quais elaboro um universo que não chego a descrever com precisão, a lhe dar existência efetiva. Vivem apenas como suposição, nomes à deriva por aí, como adivinhações.  Anoto, registro, procuro o caderno e escrevo rápido para não esquecer, a memória um tanto falha para tudo que a exige nestes dias. Mas daí não avanço, a palavra se esgota nessa possibilidade, termina ali, não sigo em frente e não a procuro porque o fato de que exista talvez me baste, eu me contento em tê-la acima e logo abaixo o vazio onde a qualquer momento eu poderei dizer o que quer que seja, mas não digo. Quem sabe seja a atenção flutuante, como o mundo flutuante, uma oscilação de energias como essa da rede que faz as luzes piscarem devagar.