Pular para o conteúdo principal

Sala de reunião

Olá, pessoal, sejam “todes bem-vindes” à sala, saudou a host da reunião dirigindo-se a todes e a ninguém em especial, ao que foi correspondida por uma onda de murmúrios assentindo à introdução após a qual foi preciso desligar o microfone de todes pela primeira vez entre tantas naquelas próximas duas horas e meia de bate-papo.

É com prazer que recebo vocês aqui para partilhar esse afeto vital em tempos de fratura social, um encontro em tempos de desencontros, continua a anfitriã, e é como se lesse uma palestra do Karnal no teleprompter.

Antes de começar de fato, quero falar sobre a experiência de reunir aqui uma gente a quem admiro, pessoas cujo trabalho me ajudam a entender o abismo em que estamos, numa urdidura de nexos sempre muito complexa.

Franzi o cenho. Detesto “urdidura”, é uma palavra que uso raramente e apenas quando desejo parecer empolado, apelando a esses maneirismos acadêmicos que ganham vida própria e saem por aí se multiplicando feito Gremlin nas salas de reuniões virtuais nestes “tempos de pandemia” – outra expressão abominável por si só.

O som de um cano de escapamento de moto atravessa a sala. O convidado, um psicanalista de certo renome, se desculpa e volta a desligar o microfone. Quando lhe é facultada a palavra, fala por meio minuto com o áudio desligado, apenas movimento labial, até que se dá conta da falta. Desculpa-se novamente e recupera o fio da “narrativa”, desenhando aspas no ar.

Duas coisas que abomino: aspas aéreas e narrativa. Hoje tudo é narrativa, nada é narrativa, há narrativa sobre o déficit de narrativa e narrativa sobre a superanbundância de narrativa, narrativa sobre a própria possibilidade de narrar, segue a mediadora do diálogo, uma jovem pesquisadora cujo campo de trabalho opera deslocamentos infinitesimais na ordem da biopolítica, de maneira que nunca sei ao certo se entendi bem.

É preciso “decriptar” os silêncios cifrados, atalha um artista com formação em Comunicação Social e doutorado em Antropologia. Faz-se silêncio.

Nesse momento, olho meu reflexo na tela do notebook recém-comprado e me imagino sendo visto do outro lado por essa audiência atenta, os livros empilhados atrás de mim. Me pergunto se minha estante é adequada para o encontro, o equivalente atual àquela dúvida antiga: será que eu tenho roupa para isso? Declaro intimamente que não tenho.

Eu pediria que desligassem o microfone, alguém pede gentilmente. Supondo que sou eu, ligo o microfone em vez de desligá-lo, o que abre esse canal de debate ao imponderável dos sons do meu quarto: o gato, a filha, uma TV ligada nos Jovens Titãs. Me distraio, tento conectar o desenho com uma leitura recente, mas sem sucesso.

A “host” desabilita meu áudio, e sinto como se tivesse sido condenado sumariamente num rito kafkiano. Melhor assim, me consolo, não há margem para o acaso quando um poder central exercer controle sobre nossa potência. Penso nisso por uns segundos: o fluxo desembestado de pensamentos sobre os quais não tenho controle em tempos de pandemia (imaginem alguém fazendo aspas aéreas), enquanto, a meio palmo do meu nariz, se desenrola um diálogo pleno de afetos para o qual eu deveria estar integralmente voltado.

Mas só consigo pescar frases pela metade e me deixar escorregar do cabelo despenteado de alguém ao súbito ronco que escuto no meio de uma fala crucial - sobre o que mesmo?

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d