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Starnone e Ferrante: o duplo romance

É possível haver coincidência no fato de que dois autores comumente associados lancem ao mesmo tempo romances que não apenas se tangenciem, mas se complementem? É o caso de Domenico Starnone, com “Segredos” (Todavia), e Elena Ferrante, com “A vida mentirosa dos adultos” (Intrínseca), ambos publicados no Brasil quase simultaneamente. Se Ferrante reelabora temas que lhe são caros, como a família, a subalternidade, a violência e as máscaras sociais, Starnone também revisita o universo que se abre na sua prosa: as relações familiares e suas tensões, ora recalcadas, ora explicitadas nos conflitos domésticos. Em “Segredos”, o escritor apresenta Pietro, um professor cuja vida se constrói meticulosamente, tal como um projeto que se desenrola por cálculo. Assombra-o, no entanto, um segredo, dividido muito tempo atrás com uma mulher: Teresa. Não se trata de qualquer pecadilho, mas de um terrível segredo capaz de fazer ruir sua carreira como escritor e pensador reconhecido nos círculos da intelec...

O mundo secreto de Elena Ferrante

Após intervalo de cinco anos desde o último livro publicado, a escritora italiana Elena Ferrante volta às prateleiras das livrarias. “A vida mentirosa dos adultos” (Intrínseca) chega apenas em setembro por aqui, mas já está disponível desde o mês passado aos assinantes do clube de leitura da editora, em tradução de Marcello Lino. No novo romance, uma adolescente chamada Giovanna se volta para a própria família à procura de desvendar-lhe os segredos, explorando os desvãos da língua, o italiano e sua forma dialetal, e também do sangue, representado pela tia Vittoria, a quem a protagonista é maldosamente comparada pelo pai. O ponto de partida é uma frase flaubertiana: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia”, narra Giovanna, à época com 12 anos, filha do típico casal da elite intelectual. Eis o golpe, o mesmo aplicado por Emma a Berta em “Madame Bovary” – como se a linhagem perdesse força naquele elo, então condenado a repetir um passado que não c...

Arrepender-se

Gente, eu tô aqui primeiro pra pedir desculpas, segundo porque já se passaram dez anos desde o meu sumiço, terceiro porque acho que já era tempo de eu mesmo me perdoar por tudo de ruim que eu falei naquela festa no meio da quarentena de 2020, vocês lembram? Eu tava realmente muito bêbado, feliz da vida, cercado de amigos, e então decidi naquele instante que eu iria deliberadamente perder as estribeiras, ainda que isso me custasse muito, como de fato custaria. Ainda custa. Mas são águas passadas e não vale a pena reviver isso. De maneira que achei oportuno voltar agora não pra explicar o que houve, mas pra dizer que hoje sou uma pessoa transformada, sabe? Eu realmente precisei cumprir esse arco narrativo de vilania para chegar ao outro lado melhor do que eu era, isso tinha de acontecer de fato porque eu me sentia esgotado. Então eu quebrei por dentro e por fora, por dentro porque passei a sentir uns problemas na cervical e arritmias, síndrome do pânico etc., por fora porque minha pele d...

Memórias de meu avô

Não conheci o meu avô, na verdade nenhum deles, de modo que falar de suas memórias é desde o início uma declaração de mentira que convida a ler não o que viveram, mas o que suponho que tenham vivido a partir dos pedaços de histórias que fui pescando ao longo da vida, trechos de relatos de minha avó, fiapos de conversas de adultos na cozinha que ouvia distraído ao passar para o banheiro. Ou cartas que, sem querer, descobri um dia numa caixa de sapatos debaixo de outras caixas no armário da mãe. Nelas um tio se refere ao pai apenas como “ele”, nunca pai ou papai, como meus primos o chamavam agora e como eu jamais chamei o meu próprio pai, numa demonstração excessiva de carinho e respeito. Em casa nunca fomos nem uma coisa nem outra, mas ásperos, indiferentes e ocasionalmente afetuosos. Por que as cartas do tio estavam em posse de minha mãe, isso é algo que talvez eu lhe pergunte antes de terminar tudo, quando o vazio que existe houver sido preenchido por uma fabulação, qualquer coisa que...

Fuga para o futuro

Como um fantasma, esse amigo reapareceu hoje. Falou comigo, quis saber como estava, então disse que todos moravam na mesma rua, os três sobre quem eu havia perguntado. Nas mesmas casas? Sim. Seguiu-se uma breve conversa, ao fim da qual eu me despedi secamente e o amigo me deixou uma última mensagem com o seu número de telefone. Pediu que ligasse. Eu não liguei. Tampouco voltei à rua onde morei quando tinha dez anos. Lembro da casa. Um quintal amplo com cajueiro e bananeira. Na frente o jardim. Dentro os quartos e o banheiro único onde examinei o próprio corpo esticar-se e uma penugem florescer aos poucos. Tardes mornas, os pais trancados, primeiro aos gritos, depois o silêncio que se consumia por horas, numa dinâmica de brigas e afagos que apenas depois de adulto eu entenderia. Brincávamos no corredor, derrubávamos o que tinha valor, enfezávamos uns aos outros, e assim os dias se sucediam. Finalmente, havia a rua. Era uma rua estranha e selvagem. A vizinhança como a Nápoles de Elena Fe...

O juiz e a “influencer”

Me parece clara a razão pela qual o caso do desembargador de São Paulo causou um imenso mal-estar a todos nós, que ainda não saímos de vez da quarentena, mas já experimentamos um retorno gradual à vida de antes, o que talvez inclua os problemas de antes, como prova a demonstração de estupidez do douto senhor. Se ainda havia a esperança vaga de que atravessaríamos esse deserto melhores, chegando ao fim do túnel aprimorados como seres humanos que tinham sido submetidos a meses de confinamento e medo, o juiz sentenciou-a à morte. Suas palavras melífluas, o tom entre o calmo e o explosivo, as mãos trêmulas, o impasse instalado e a tensão de um desfecho violento – toda a cena parecia a síntese de um aprendizado que nos devolveu aos tempos de pré-pandemia, despressurizando as crenças de uma suposta benevolência coletiva derivada do aprendizado da doença. E aí, enquanto chegávamos aos 80 mil mortos por covid-19, demos de cara com aquela fala, uma velha conhecida de qualquer um porque vem send...

Um balanço

Pensei num balanço da quarentena, coisas que aprendi (nada) e também coisas que imaginei que aprenderia no curso desses pouco mais de 100 dias de confinamento, quando supus, ainda em março, que tudo não levaria dois meses e logo estaríamos de volta. Duplo engano. Tanto a exclusão consumiria bem mais tempo, quanto o processo em si de estar em casa por longas horas não seria como um mergulho em si mesmo, uma volta às origens ou mesmo uma oportunidade para aprender jardinagem ou francês. E, no entanto, julgo que, a despeito de tudo, houve mesmo uma reconexão com algo cuja natureza não sei qual é, mas do qual me sinto próximo, como um primo que esbarra num familiar muitos anos depois de um único contato na infância e o reconhece pelas características físicas comuns – uma sobrancelha arqueada, a calva, os braços longos ou uma maneira especial de fingir-se estranho. De maneira que, embora saiba que nesse dias e semanas que se passaram eu tive momentos de uma franca conversa com essa matéria ...