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O juiz e a “influencer”


Me parece clara a razão pela qual o caso do desembargador de São Paulo causou um imenso mal-estar a todos nós, que ainda não saímos de vez da quarentena, mas já experimentamos um retorno gradual à vida de antes, o que talvez inclua os problemas de antes, como prova a demonstração de estupidez do douto senhor.

Se ainda havia a esperança vaga de que atravessaríamos esse deserto melhores, chegando ao fim do túnel aprimorados como seres humanos que tinham sido submetidos a meses de confinamento e medo, o juiz sentenciou-a à morte.

Suas palavras melífluas, o tom entre o calmo e o explosivo, as mãos trêmulas, o impasse instalado e a tensão de um desfecho violento – toda a cena parecia a síntese de um aprendizado que nos devolveu aos tempos de pré-pandemia, despressurizando as crenças de uma suposta benevolência coletiva derivada do aprendizado da doença.

E aí, enquanto chegávamos aos 80 mil mortos por covid-19, demos de cara com aquela fala, uma velha conhecida de qualquer um porque vem sendo repetida há muito tempo e em qualquer lugar.

É o discurso de autoridade, esse para o qual a norma coletiva não se aplica porque a posição conquistada a custo de privilégio lhe assegura o direito à brecha e ao desvio a toda regra. Nada de novo, exceto a irredutibilidade dos agentes de segurança, cuja postura ante uma ameaça à saúde pública foi de implacável retidão e anormal persistência.

Pulo para o caso Pugliesi, a estrela cancelada ainda em março depois de receber amigos em uma festa caseira na qual fez um vídeo constrangedor no início da onda de mortes. Àquela altura, quando a pandemia já era o que era e o casamento da irmã na Bahia houvesse colaborado para a disseminação inicial da patologia no Brasil, a “influencer” houve por bem desabafar: “Foda-se a vida”.

Nada que o próprio presidente da República não tenha dito nesse período, mas Bolsonaro não ganha dinheiro vendendo saúde e beleza nas redes sociais, tampouco precisa provar-se atlético e saudável permanentemente como moeda de troca.

Depois de três meses sumida e com os perfis bloqueados, Pugliesi reapareceu antes de ontem, agora com uma retórica modulada para a chave do “coaching”. Vestindo branco e estampando mensagem de amor e concórdia, assegurou que tinha aprendido com os erros, que lhe custaram, além do ódio habitual decantado nas redes, muito dinheiro.

De sua performance, ficou evidente o mecanismo da edição: do ambiente “clean” do quarto à postura, tudo meticulosamente preparado e estudado para obter o máximo do efeito que se esperava, ou seja, o reposicionamento da empresária preocupada com o futuro dos negócios. Foi de blogueira fitness a guru espiritual, transformando o episódio malvisto em arco narrativo vendável – uma típica jornada de redenção, bem ao gosto da novelização da vida real que a internet adora consumir.

O desembargador autoritário e a influencer arrependida encontram-se exatamente neste ponto. Aproximam-se não por contato, mas por contraste: ambos fizeram uso do mascaramento. Um para deixar a ver um discurso já antigo e presente na cultura nacional (o fato de que não usasse máscara apenas reforça a metáfora). E a outra para encobri-lo, ainda que seja necessário incorporar uma nova roupagem.

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