Gente, eu tô aqui primeiro pra pedir desculpas, segundo porque já se passaram dez anos desde o meu sumiço, terceiro porque acho que já era tempo de eu mesmo me perdoar por tudo de ruim que eu falei naquela festa no meio da quarentena de 2020, vocês lembram?
Eu tava realmente muito bêbado, feliz da vida, cercado de amigos, e então decidi naquele instante que eu iria deliberadamente perder as estribeiras, ainda que isso me custasse muito, como de fato custaria. Ainda custa. Mas são águas passadas e não vale a pena reviver isso.
De maneira que achei oportuno voltar agora não pra explicar o que houve, mas pra dizer que hoje sou uma pessoa transformada, sabe? Eu realmente precisei cumprir esse arco narrativo de vilania para chegar ao outro lado melhor do que eu era, isso tinha de acontecer de fato porque eu me sentia esgotado. Então eu quebrei por dentro e por fora, por dentro porque passei a sentir uns problemas na cervical e arritmias, síndrome do pânico etc., por fora porque minha pele descamou e meu cabelo caiu.
Mas agora eu entendo, tudo isso era necessário para que eu pudesse extrair 100% do meu potencial “full time”, me reconectar com meu “self” e deixar pra trás aquela carapaça em que eu tinha me transformado, vivendo cada dia com uma sofreguidão juvenil e vazia que não se preenchia de nenhuma substância que eu ingeria, pelo contrário, era como se cada dose de tequila e cada cigarro me secassem, fazendo vazar o tenho de melhor, o meu espírito, o néctar da minha humanidade, a quintessência da minha persona construída meticulosamente numa década de projeção virtual durante a qual eu precisei inventar uma pessoa praticamente do zero, como um pedreiro que ergue um condomínio luxuoso sem ajuda de ferramentas, apenas com as próprias mão.
Eu era esse cara, e então de repente tudo virou pó. Vocês têm noção disso?
E agora eu tava ali, caído no ralo do banheiro com ar-condicionado e espelhos até dentro do sanitário, vendo meu reflexo fragmentar-se em mil e um caquinhos, numa metáfora perfeita do despedaçamento da minha subjetividade. Eu me via nessa “badtrip” típica de uma sunset, com todo mundo vestindo branco e aparentando muito menos idade do que tinha. Me perguntava se o Uber viria até ali me buscar ou se eu precisaria sair com as próprias pernas e caminhar até o carro, voltar pra casa e deitar e daí esquecer por definitivo esse dia horroroso que eu tive muito tempo atrás.
Horrível, mas super importante.
Isso eu descobri nesses anos todos cultivando um jardim e me dedicando à vida off-line, que também é muito interessante e pode valer a pena se você tiver condições de manter uma rotina de publicações em perfis falsos e pagar uma boa assessoria que vai ajudar nessa via-crúcis de recombinação algorítimica com uma redenção íntima auxiliada por gente que entende desse tipo de coisa.
Um conselho: depois de perder a mão e cair do cavalo virtual, a onda passa, as máscaras se rompem, e nada nem ninguém vai fazer com que o mundo volte a dar crédito ao que você tem pra dizer, ainda que você genuinamente tenha se transformado em outra pessoa, como é o meu caso, entende? Eu não sou mais o mesmo, sou um outro cuja rosto apenas por acaso é o mesmo dessa pessoa que eu fui nessa festa na qual eu festejei a vida no meio daquela doença que deixou todo mundo pra baixo por tanto tempo.
Foi o que fiz. Enquanto me purgava nessa busca por mim no mais escuro de mim mesmo aqui numa zona reservada do bairro para onde eu me mudei quando quis privacidade, optando por um apartamento menor (160 m²), numa jornada espiritual “indoor” assegurada por aplicativos de comida e marcas que nunca me abandonaram nesse processo doloroso, aos poucos recuperei minha autoestima e me convenci de que eu não era esse monstro que todos de repente pintavam. Não o tempo inteiro, pelo menos.
Obviamente que eu tinha traços narcísicos abundantes que fazia todo o resto perder os contornos, restando apenas o holofote dirigido para o círculo mais restrito de amigos que me cercavam, mas nem por isso eu estava alheia ao que acontecia fora daqui.
Eu sabia que havia essa coisa chata de pandemia e tal, mas entendia também que a vida é feita de desafios e que, nas crises, a gente precisa se reinventar. Era o que eu estava fazendo, buscando afetos no meio dessa confusão toda, testando meus limites etc. Estava errado, mas eu me perdoo.
Por isso ressurgi agora, tanto tempo depois, para falar a quem tiver a generosidade de escutar que, se acreditarem nesse método curativo, é possível atravessar esse vale de lágrimas e esquecimento e se reposicionar com algum sucesso, reinserindo-se no mercado do ego a despeito dos arranhões causados na queda e posterior recuperação. Nem tudo está perdido, pensem nisso, principalmente se essa troca de nome empacotada como metamorfose fluir como uma narrativa.
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