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Arrepender-se

Gente, eu tô aqui primeiro pra pedir desculpas, segundo porque já se passaram dez anos desde o meu sumiço, terceiro porque acho que já era tempo de eu mesmo me perdoar por tudo de ruim que eu falei naquela festa no meio da quarentena de 2020, vocês lembram? Eu tava realmente muito bêbado, feliz da vida, cercado de amigos, e então decidi naquele instante que eu iria deliberadamente perder as estribeiras, ainda que isso me custasse muito, como de fato custaria. Ainda custa. Mas são águas passadas e não vale a pena reviver isso. De maneira que achei oportuno voltar agora não pra explicar o que houve, mas pra dizer que hoje sou uma pessoa transformada, sabe? Eu realmente precisei cumprir esse arco narrativo de vilania para chegar ao outro lado melhor do que eu era, isso tinha de acontecer de fato porque eu me sentia esgotado. Então eu quebrei por dentro e por fora, por dentro porque passei a sentir uns problemas na cervical e arritmias, síndrome do pânico etc., por fora porque minha pele d...

Memórias de meu avô

Não conheci o meu avô, na verdade nenhum deles, de modo que falar de suas memórias é desde o início uma declaração de mentira que convida a ler não o que viveram, mas o que suponho que tenham vivido a partir dos pedaços de histórias que fui pescando ao longo da vida, trechos de relatos de minha avó, fiapos de conversas de adultos na cozinha que ouvia distraído ao passar para o banheiro. Ou cartas que, sem querer, descobri um dia numa caixa de sapatos debaixo de outras caixas no armário da mãe. Nelas um tio se refere ao pai apenas como “ele”, nunca pai ou papai, como meus primos o chamavam agora e como eu jamais chamei o meu próprio pai, numa demonstração excessiva de carinho e respeito. Em casa nunca fomos nem uma coisa nem outra, mas ásperos, indiferentes e ocasionalmente afetuosos. Por que as cartas do tio estavam em posse de minha mãe, isso é algo que talvez eu lhe pergunte antes de terminar tudo, quando o vazio que existe houver sido preenchido por uma fabulação, qualquer coisa que...

Fuga para o futuro

Como um fantasma, esse amigo reapareceu hoje. Falou comigo, quis saber como estava, então disse que todos moravam na mesma rua, os três sobre quem eu havia perguntado. Nas mesmas casas? Sim. Seguiu-se uma breve conversa, ao fim da qual eu me despedi secamente e o amigo me deixou uma última mensagem com o seu número de telefone. Pediu que ligasse. Eu não liguei. Tampouco voltei à rua onde morei quando tinha dez anos. Lembro da casa. Um quintal amplo com cajueiro e bananeira. Na frente o jardim. Dentro os quartos e o banheiro único onde examinei o próprio corpo esticar-se e uma penugem florescer aos poucos. Tardes mornas, os pais trancados, primeiro aos gritos, depois o silêncio que se consumia por horas, numa dinâmica de brigas e afagos que apenas depois de adulto eu entenderia. Brincávamos no corredor, derrubávamos o que tinha valor, enfezávamos uns aos outros, e assim os dias se sucediam. Finalmente, havia a rua. Era uma rua estranha e selvagem. A vizinhança como a Nápoles de Elena Fe...

O juiz e a “influencer”

Me parece clara a razão pela qual o caso do desembargador de São Paulo causou um imenso mal-estar a todos nós, que ainda não saímos de vez da quarentena, mas já experimentamos um retorno gradual à vida de antes, o que talvez inclua os problemas de antes, como prova a demonstração de estupidez do douto senhor. Se ainda havia a esperança vaga de que atravessaríamos esse deserto melhores, chegando ao fim do túnel aprimorados como seres humanos que tinham sido submetidos a meses de confinamento e medo, o juiz sentenciou-a à morte. Suas palavras melífluas, o tom entre o calmo e o explosivo, as mãos trêmulas, o impasse instalado e a tensão de um desfecho violento – toda a cena parecia a síntese de um aprendizado que nos devolveu aos tempos de pré-pandemia, despressurizando as crenças de uma suposta benevolência coletiva derivada do aprendizado da doença. E aí, enquanto chegávamos aos 80 mil mortos por covid-19, demos de cara com aquela fala, uma velha conhecida de qualquer um porque vem send...

Um balanço

Pensei num balanço da quarentena, coisas que aprendi (nada) e também coisas que imaginei que aprenderia no curso desses pouco mais de 100 dias de confinamento, quando supus, ainda em março, que tudo não levaria dois meses e logo estaríamos de volta. Duplo engano. Tanto a exclusão consumiria bem mais tempo, quanto o processo em si de estar em casa por longas horas não seria como um mergulho em si mesmo, uma volta às origens ou mesmo uma oportunidade para aprender jardinagem ou francês. E, no entanto, julgo que, a despeito de tudo, houve mesmo uma reconexão com algo cuja natureza não sei qual é, mas do qual me sinto próximo, como um primo que esbarra num familiar muitos anos depois de um único contato na infância e o reconhece pelas características físicas comuns – uma sobrancelha arqueada, a calva, os braços longos ou uma maneira especial de fingir-se estranho. De maneira que, embora saiba que nesse dias e semanas que se passaram eu tive momentos de uma franca conversa com essa matéria ...

Um passeio

No domingo inventamos de sair de carro apenas para olhar a cor do mar. Na verdade, certificar-se de que continuava lá, e não havia sido aterrado ou transformado num estacionamento de farmácia enquanto a quarentena se arrastava como uma aula de Físico-Química do 2º ano B (turno da tarde). O mar segue no seu canto, apenas mais distante. A vista não o alcança mais da avenida, por exemplo, e onde antes se entrevia o verde-esmeralda há somente o estirão de areia branca penteada por uma máquina dia sim, dia não, nesse lento trabalho feito por alguém com TOC que cria linhas simétricas e paralelas no chão, deixando mensagens sabe-se deus a quem. Supõe-se, contudo, que esteja lá, logo depois daquele trecho que se eleva e, súbito, despenca como um desfiladeiro, após o qual sempre imagino que as ondas quebrem mais bruscas e insidiosas, nesse redesenho da orla da cidade operado pela inteligência local. Ali crianças dão cambalhotas e adultos jogam bola ou caçam tubarões e depois os matam, como num...

Rascunho

Tinha anotado ideias da viagem, coisas ligeiras como essas paisagens que vemos passar no deslocamento acelerado do carro numa estrada, a vista sempre firmada no horizonte. E talvez fosse isso mesmo o que tivesse a dizer, de repente a permanência nesse estado houvesse feito entender que, por seis ou sete horas, tudo que havia era o ponto logo à frente, como se vivesse de futuro, nunca de presente ou passado. Fixava uma árvore, uma ave, uma mancha no asfalto irregular, e daí tudo se tornava antigo em poucos segundos, como numa máquina do tempo. Às vezes, porém, se destaca o rosto num alpendre, uma rede estirada sem presença, um terreiro enfeitado com bandeirinhas coloridas. Uma festa sem festa na cidade sob a ameaça invisível da doença. E aí chego a essa praça. Poucas cadeiras em redor, no topo da torre da igreja um alto-falante transmitindo a voz mansa do padre da região. Depois mais estrada. Cansaço. As pernas esticadas e quase dormentes, a fome que chega aos bocados, como ondas. Eram ...