No domingo inventamos de sair de carro apenas para olhar a cor do mar. Na verdade, certificar-se de que continuava lá, e não havia sido aterrado ou transformado num estacionamento de farmácia enquanto a quarentena se arrastava como uma aula de Físico-Química do 2º ano B (turno da tarde).
O mar segue no seu canto, apenas mais distante. A vista não o alcança mais da avenida, por exemplo, e onde antes se entrevia o verde-esmeralda há somente o estirão de areia branca penteada por uma máquina dia sim, dia não, nesse lento trabalho feito por alguém com TOC que cria linhas simétricas e paralelas no chão, deixando mensagens sabe-se deus a quem.
Supõe-se, contudo, que esteja lá, logo depois daquele trecho que se eleva e, súbito, despenca como um desfiladeiro, após o qual sempre imagino que as ondas quebrem mais bruscas e insidiosas, nesse redesenho da orla da cidade operado pela inteligência local.
Ali crianças dão cambalhotas e adultos jogam bola ou caçam tubarões e depois os matam, como numa nova modalidade de esportividade náutica cultivada em tempos de restrições de circulação e tédio doméstico. Um retorno à selvageria. Somos bons nisso, pilharmos nossa fauna e flora.
Mas, apesar de tudo, não há razões para crer que teriam sumido com o mar nesses dias de distração coletiva, exatamente como fizeram com a estátua da rendeira, arrancada a martelo, um alvo fácil da pirataria oficial.
Com a praia não se brinca, entretanto. Dela se pode dizer qualquer coisa, mas nunca que está sujeita aos interesses mundanos. O que não quer, cuida em devolver. E o que deseja, arrasta, carregando ao fundo e depois, quando não há mais nada, fazendo retornar como corpo seco de qualquer novidade. Vê-lo depois de meses de confinamento foi o ponto alto do domingo – o mar, escondido e belo.
Nos vestimos à maneira de banhistas, mas não saímos do carro. Perto da faixa de areia, baixamos os vidros e aspiramos fundo o odor salgado que vem também em ondas – era o cheiro corrosivo de Fortaleza, lugar onde a memória é comida de todas as maneiras, do litoral ao sertão.
Imagino que inúmeras famílias tenham feito o mesmo nesse período de dificuldades no qual tivemos de lidar com questões de saúde e de relações. Pessoas em casa às voltas com a organização social das tarefas, pessoas em transe sem conseguir retomar o fio da organização, pessoas desempregadas, pessoas ansiosas à espera de um desfecho, pessoas à mesa em torno da pizza entregue por um jovem de bicicleta – teria 20 anos?
E então, em algum momento, cedemos ao aborrecimento que é, por si, um privilégio, e decidimos fazer o que se tornou uma atividade arriscada em tempos de pandemia porque vista com certa desconfiança, sobretudo se a praticamos publicamente: respirar.
O verbo da quarentena, convertido em motivo de luta política, expressão do direito mais básico, o de existir, respirar impunha-se como válvula de escape, uma necessidade de cheirar o alheio, reencontrar uma paisagem pelo olfato, ter com o lugar onde se vive a alegria de reconhecer-se por essa marca.
Corremos à Sabiaguaba e de lá ao Cocó, ponto de oxigenação. Apenas de passagem, a ver se retinha comigo um tanto antes de voltar aos cheiros da casa, já tão gastos e mesmo pegados ao corpo, como não houvesse diferença mais entre o fogão, a geladeira e as roupas que usamos, tudo parte do mesmo maquinário.
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