Pular para o conteúdo principal

Postagens

Um balanço

Pensei num balanço da quarentena, coisas que aprendi (nada) e também coisas que imaginei que aprenderia no curso desses pouco mais de 100 dias de confinamento, quando supus, ainda em março, que tudo não levaria dois meses e logo estaríamos de volta. Duplo engano. Tanto a exclusão consumiria bem mais tempo, quanto o processo em si de estar em casa por longas horas não seria como um mergulho em si mesmo, uma volta às origens ou mesmo uma oportunidade para aprender jardinagem ou francês. E, no entanto, julgo que, a despeito de tudo, houve mesmo uma reconexão com algo cuja natureza não sei qual é, mas do qual me sinto próximo, como um primo que esbarra num familiar muitos anos depois de um único contato na infância e o reconhece pelas características físicas comuns – uma sobrancelha arqueada, a calva, os braços longos ou uma maneira especial de fingir-se estranho. De maneira que, embora saiba que nesse dias e semanas que se passaram eu tive momentos de uma franca conversa com essa matéria ...

Um passeio

No domingo inventamos de sair de carro apenas para olhar a cor do mar. Na verdade, certificar-se de que continuava lá, e não havia sido aterrado ou transformado num estacionamento de farmácia enquanto a quarentena se arrastava como uma aula de Físico-Química do 2º ano B (turno da tarde). O mar segue no seu canto, apenas mais distante. A vista não o alcança mais da avenida, por exemplo, e onde antes se entrevia o verde-esmeralda há somente o estirão de areia branca penteada por uma máquina dia sim, dia não, nesse lento trabalho feito por alguém com TOC que cria linhas simétricas e paralelas no chão, deixando mensagens sabe-se deus a quem. Supõe-se, contudo, que esteja lá, logo depois daquele trecho que se eleva e, súbito, despenca como um desfiladeiro, após o qual sempre imagino que as ondas quebrem mais bruscas e insidiosas, nesse redesenho da orla da cidade operado pela inteligência local. Ali crianças dão cambalhotas e adultos jogam bola ou caçam tubarões e depois os matam, como num...

Rascunho

Tinha anotado ideias da viagem, coisas ligeiras como essas paisagens que vemos passar no deslocamento acelerado do carro numa estrada, a vista sempre firmada no horizonte. E talvez fosse isso mesmo o que tivesse a dizer, de repente a permanência nesse estado houvesse feito entender que, por seis ou sete horas, tudo que havia era o ponto logo à frente, como se vivesse de futuro, nunca de presente ou passado. Fixava uma árvore, uma ave, uma mancha no asfalto irregular, e daí tudo se tornava antigo em poucos segundos, como numa máquina do tempo. Às vezes, porém, se destaca o rosto num alpendre, uma rede estirada sem presença, um terreiro enfeitado com bandeirinhas coloridas. Uma festa sem festa na cidade sob a ameaça invisível da doença. E aí chego a essa praça. Poucas cadeiras em redor, no topo da torre da igreja um alto-falante transmitindo a voz mansa do padre da região. Depois mais estrada. Cansaço. As pernas esticadas e quase dormentes, a fome que chega aos bocados, como ondas. Eram ...

A passagem da água

O presidente passou rente às casas à beira do canal que transportaria água até Fortaleza, residências de súbito esvaziadas porque a dois metros da calçada já era território do comboio, batedores militares à frente. Um dia antes, um grupo estivera ali. Puseram tudo em revista, estudaram cada pequeno cômodo, traçaram linhas no chão vermelho de terra, delimitaram por onde estavam autorizados a circular, sempre munidos de documentos que os identificassem corretamente, de modo que a entrada naquele mundo que conheciam tão bem fosse permitida. Depois partiram. Naquela noite Antônia não dormiu, e, quando finalmente pegou no sono, sonhou que encontrava a filha natimorta e juntas tomavam banho de açude na casa da tia em Coreaú. Mas nem Elena existia, tampouco a tia, que morrera após agravamento do diabetes. Na cidade haviam restado poucos da família: Elisabeth, Elisângela e Eliete, tudo parte da mesma cumeeira de uma linhagem que se apagava aos poucos. Mas então acordou. Engoliu em seco o vento...

Loucura de amor

Quero falar da loucura de amor, essa modalidade morta-viva que ganhou vitalidade em meio a uma doença que restringiu as relações, os contatos, o beijo e o abraço, deixando-nos tão carentes a ponto de tolerarmos que um alheio se poste à frente de nossa casa com um megafone em punho e nos deseje felicidade e amor às fartas. Sempre fora assim; como o aniversário caísse no dia dos namorados, tratavam de unir o útil ao agradável, premiando-se duplamente. A trilha sonora é José Augusto, escolhida porque naquele dia, naquele lugar, tocava essa música e não outra. Foi lá que se conheceram. E agora está ali, à janela, temendo pelo pior: que os vizinhos chamem a polícia para dispersar a surpresa, uma aglomeração de curiosos em formação na esquina para a testemunhar esse tumultuoso evento afetivo planejado com as melhores intenções, como costuma acontecer com os grandes crimes da humanidade. Além de todas as perdas, a Covid preparou-nos mais essa. Fez reviver o pior dos anos de 1990, quando os na...

Os olhos

Eu tinha a pretensão de escrever sobre o papel dos olhos no meio dessa pandemia, mas isso foi antes de descobrir que o Verissimo já havia feito isso, e feito ao modo do Verissimo, o que significa dizer que eu posso até tentar, desde que esteja certo de que fracassarei. É esse fracasso antecipado que me conforta e dá segurança para continuar. Mas, agora que comecei, vejo que não foi uma boa ideia. Porque, uma vez que a palavra instaura a imagem, e o texto do Verissimo faz isso, é impossível dissociá-la dessa ideia de que pertence a alguém. É como querer se livrar de um cheiro marcante. Simplesmente não dá. Com essa história dos olhos é a mesma coisa. Um dia, estava no supermercado parado. Olhava a caixa, que me olhava de volta. Ambos esperávamos por algo que não sabíamos o que era. Nesse ponto eu me afastei e levantei a máscara, pronunciando rapidamente as palavras, quase como um delinquente que anuncia um assalto: como eu posso ajudar? Ela aguardava que eu dissesse apenas se era débito...

Mulher aos pedaços

Não sei se por obra da quarentena ou da proximidade da virada de página de um calendário pessoal, estive à toa nas últimas horas, comovido com a história da “Mulher rendeira”. Aos pedaços, encontrada no lixo em vias de se transformar em entulho para reciclagem. A cabeça entre as pernas longas, tudo sem dar com nada, os membros desconexos atravessados depois de terem sido arrancados a golpes de martelo por operários de construção que cumpriam ordens do banco. Erro de projeto, disseram. Mas ninguém o corrigiu a tempo, de modo que a mulher possuía destino final: o aterro. Tinha com a rendeira uma relação que é talvez a de muitos cearenses: a de passar e olhar, habituado que estava em vê-la sempre vergada sobre o rolo de bilro, o cabelo preso em coque e no rosto essa expressão severa de quem se acha interrompida nos afazeres por uma criança que reina pela casa. Não a achava simpática, mas gostava que estivesse ali. Era assim que a via, quase como uma tia, que é aparentada dessa rendeira po...