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A passagem da água


O presidente passou rente às casas à beira do canal que transportaria água até Fortaleza, residências de súbito esvaziadas porque a dois metros da calçada já era território do comboio, batedores militares à frente. Um dia antes, um grupo estivera ali. Puseram tudo em revista, estudaram cada pequeno cômodo, traçaram linhas no chão vermelho de terra, delimitaram por onde estavam autorizados a circular, sempre munidos de documentos que os identificassem corretamente, de modo que a entrada naquele mundo que conheciam tão bem fosse permitida. Depois partiram.

Naquela noite Antônia não dormiu, e, quando finalmente pegou no sono, sonhou que encontrava a filha natimorta e juntas tomavam banho de açude na casa da tia em Coreaú. Mas nem Elena existia, tampouco a tia, que morrera após agravamento do diabetes. Na cidade haviam restado poucos da família: Elisabeth, Elisângela e Eliete, tudo parte da mesma cumeeira de uma linhagem que se apagava aos poucos. Mas então acordou. Engoliu em seco o vento quente já às seis horas da manhã do dia em que o presidente visitaria o lugar. Não a cidade, mas o trecho, o pedaço já desde muito demarcado dentro do qual, com segurança e à vista de fardados, circularia e distribuiria acenos de falsa simpatia.

Romualdo, cego desde sempre, tinha ido ao encontro. Vestira uma camisa do Brasil que havia comprado na feira do Brejo Santo no fim do ano passado. Agora devia estar levando sol à espera – à espera do quê?, ela tinha perguntado um dia antes. É a água que chega, respondera o marido, ao lado de quem já se tinha habituado a aceitar que a força se impunha sem necessidade de convencimento. Desconfiada, Antônia fincou pé. Que o homem fosse sozinho, era besta pra isso. Ficaria em casa no batente, a ver se o presidente iria parar e lhe pedir um copo d’água. Não parou. Num segundo, o comboio subiu e desceu o morro, depois mergulhou numa curva acentuada e em seguida aproximou-se da beira do canal ainda seco.

Por ali a água passaria, diziam desde muito tempo, histórias para as quais não dava atenção porque as supunha fantasiosas. Tudo não deve ter levado duas horas, o tempo de o feijão cozinhar. Já meio-dia, o canteiro se esvaziara, e mesmo os pobres coitados que faziam guarda no meio do tempo já se tinham recolhido, a vila novamente mergulhada em silêncio e esquecimento.

Romualdo não tornara, de certo tinha ficado no caminho preso numa cachaça. A lembrança do banho de açude no juízo, Antônia calçou a alpargata. Pôs-se na estrada. Na quentura, cobriu-se com um lençol fino e alvo. Mesmo perto, não viu o fundo do canal, um buraco aberto por pás metálicas que trabalharam por muitos dias e meses. Não tinha fim. Aproximou-se. Então viu o filete d’água escorrendo feito a língua que lambesse sôfrega a superfície quente do chão.

Por força sabe-se Deus do quê, porque não entendia o engenho por trás da obra, a água passava agora a metros do quintal. Mas não parava. Tinha ordens de chegar à capital, no caminho enchendo açude e braço de rio, uma coisa alimentando-se da outra, e no caminho também deixando de molhar os pés de Antônia, àquela altura encardidos da poeira.

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