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O novo anormal

Novidade da paisagem pandêmica, as transmissões ao vivo inauguraram uma nova maneira de se estar nu sem estar. Diluem fronteiras entre privado e público, instaurando essa zona cinzenta pela qual transitamos sem saber ao certo se vamos à paisana ou em modos de trabalho, se nos vestimos bem apenas da cintura para cima ou se nos metemos inteiramente em trajes de passeio, ainda que reconheçamos que os pés não hão de cruzar a soleira da porta. Essa confusão de registros tem criado embaraços de toda sorte. Disso resulta uma comunicação híbrida, sob chave doméstica e mais intimista? Cedo para dizer. Conversando com uma amiga jornalista habituada ao rádio, eis que me confidenciou que a audiência gosta de vê-la trabalhando, e não somente ouvi-la, e até vibra quando leva uma xícara de café à boca. Então é isso: como estamos afastados uns dos outros e qualquer contato físico é, desde agora, uma infração legal passível de detenção e um ato de desafio às autoridades sanitárias, o banal no...

Diário da quarentena (parte 5)

Em que momento a gente se acostumou com as sirenes? Não lembro agora, mas acho que, no final de abril, enquanto a paisagem sonora era atravessada por essa estridência, entendi que a audição havia normalizado o sinal de alerta. Não era mais como um grito desesperado proferido por uma agonia secreta da qual eu sabia pouco. Era como o esguicho de um corpo na rua cuja morte talvez fosse comunicada dali a horas, em escalada no jornal, somando-se aos demais números que são atualizados todos os dias, nessa contabilidade mórbida e banal ao mesmo tempo. Essa é uma das marcas da peste: a intangibilidade. Tudo é longe e perto. O amigo de um amigo, a avó de um colega de trabalho, o pai de uma pessoa a quem cumprimentei dois meses atrás. As distâncias se encurtam. Nenhum fosso é tão fundo que não possa ser transposto. Ando até a janela, me escoro com os cotovelos fincados no parapeito. Choveu pouco, o asfalto molhado. A rua vazia. Cheiro de planta. Ainda não é meia-noite. Foi a quinta ...

Sonhos de quarentena

Não tem sido fácil sonhar. Digo, sonhar com coisas que não pareçam angustiantes. Há dias tenho o mesmo sonho, um gato me ataca enquanto tento alimentá-lo. Acordo sobressaltado. Quando volto a dormir, sonho com uma tia já morta e um tio eletricista dançando lambada na sala ao som de Beto Barbosa. Não faz sentido, eu sei. No fundo, queria mesmo era sonhar jogando baralho com a vó enquanto a gente come cuscuz na mesa da cozinha, mas os sonhos têm essa parte chata: são ingovernáveis. Assumem um ritmo e conteúdo próprios, aleatórios, aparentemente desconectados das horas cotidianas. Desde o início da quarentena, os meus sonhos pioraram. Não sei se posso usar essa palavra para me referir a meus próprios sonhos: piorar, como se houvesse bons sonhos e maus sonhos, e estes fossem de inteira responsabilidade de quem os tem. Quando entro naquele estágio profundo do sono, não sou mais eu. E ainda sou. Por isso acordo de ressaca, cheio dessa matéria estranha que gruda no corpo. Volt...

Diário da quarentena (parte 4)

De repente, os objetos da casa começaram a enguiçar. Primeiro o computador, depois o celular, como numa revolta do mundo inanimado, que aproveitou a quarentena para mostrar que estamos à mercê de coisas, e essas coisas têm vida própria. Ontem foi a vez da geladeira, que já vinha dando sinais de que, mais dia, menos dia, pediria a conta dos trabalhos forçados por quase dez anos ininterruptos e finalmente descansaria, sem direito a aposentadoria após tanto tempo aguentando vasilhas de feijão azedo esquecidas por meses num canto da prateleira e fatias de cebola cortadas e jamais usadas. Antes, porém, o ventilador, num arroubo juvenil, recusou-se a funcionar por três horas, num piquete que entendi como recado político claro: naquela noite abafada de Fortaleza, sua importância era vital. Ele sabia disso. Eu também.   Mancomunado com o ar-condicionado, o eletrodoméstico impôs-se uma operação tartaruga, e suas hélices não se moveram por muito tempo, me obrigando a tomar ci...

Diário da quarentena (parte 3)

Começo a inventar distrações domésticas, como contar os feijões e os caroços de arroz. Primeiro apenas de dois em dois, depois de três em três e assim por diante, até que finalmente toda a despensa está etiquetada por data e número de grãos em ordem decrescente, tudo separado e organizado por cor e data de validade. Obviamente há formas mais interessantes de matar o tempo em tempos de quarentena, mas talvez nenhuma tão eficiente no seu propósito de prolongar ao máximo uma atividade ao fim da qual será outra semana, talvez outro mês, quem sabe outra vida – uma semana, um mês e uma vida na qual não haja pandemia e todos estejamos enfurnados em casa. Outra hipótese é a de reparar melhor no traçado do piso de casa, enganosamente simétrico, com hexágonos intercalados à perfeição, mas irregular, aqui e ali sobrando um espaço onde o pedreiro certamente precisou encaixar uma peça que faltava e para a qual não havia resposta prevista. Assim como a pintura da parede do apartament...

Diário da quarentena (parte 2)

Uma semana se passou desde que saí de casa pela última vez, de modo que precisei inventar razões para ir até a mercearia da esquina, único ponto de concentração de pessoas num raio de muitos quilômetros. Como faltasse banana em casa, calhei de que a fruta era necessidade básica, um item vital sem o qual o combate ao coronavírus fracassaria no ambiente doméstico, colocando a vida de todos em risco, algo como uma máscara ou álcool em gel. Era mentira, claro. Na verdade, eu só queria ver gente, não importava quem fosse, desde que fosse gente de verdade e não rostos em imagens de baixa qualidade na tela do celular ou do computador tremulando ou congelando em caretas sempre que a conexão caía ou perdia força. Desci à bodega, que é o termo mais adequado para chamar aquele espaço no qual garrafas de cachaça dividem os cestos de compras com pacotes de macarrão e latas de feijoada. Esperava encontrar os mesmos bêbados de sempre, homens mais velhos e também jovens cuja rotina etíl...

Diário da quarentena

Que fazer na quarentena? A dúvida incomodava, não apenas porque escancarava a condição privilegiada de quem se permite elencar atividades e distrações num momento de pandemia, mas também porque de fato carregava um sentido honesto: que fazer? Eu não sabia. Apesar das dificuldades, e cansado de ler jornais e ver TV com imagens de italianos bonachões manejando acordeons de suas casas instaladas em paisagens do século XVI enquanto bebericam vinho, tentei puxar um coro de Raça Negra na varanda de casa. Ninguém respondeu, exceto um gato no telhado da casa ao lado, que miou de volta, como se compadecido ante o esforço de criar uma sociabilidade no meio desse quadro de excepcionalidade a que o vírus empurrou a todos, impondo a distância como regra de convívio e fazendo do mundo um grande programa de fim de semana de adolescentes com dificuldade de relacionamento.   Eu estava cansado, portanto, irritado e cansado. Irritado, cansado e profundamente desconfiado diante de tudo...