Começo a inventar distrações
domésticas, como contar os feijões e os caroços de arroz. Primeiro apenas de
dois em dois, depois de três em três e assim por diante, até que finalmente
toda a despensa está etiquetada por data e número de grãos em ordem decrescente,
tudo separado e organizado por cor e data de validade.
Obviamente há formas mais
interessantes de matar o tempo em tempos de quarentena, mas talvez nenhuma tão
eficiente no seu propósito de prolongar ao máximo uma atividade ao fim da qual
será outra semana, talvez outro mês, quem sabe outra vida – uma semana, um mês e
uma vida na qual não haja pandemia e todos estejamos enfurnados em casa.
Outra hipótese é a de reparar
melhor no traçado do piso de casa, enganosamente simétrico, com hexágonos intercalados
à perfeição, mas irregular, aqui e ali sobrando um espaço onde o pedreiro
certamente precisou encaixar uma peça que faltava e para a qual não havia
resposta prevista.
Assim como a pintura da parede
do apartamento exibe neste momento toda a riqueza das suas ranhuras, demonstrando
que por trás da superfície aparentemente branca e lisa preexistia uma camada de
tinta oculta e desgastada que fora derramada por mãos mais habilidosas que as
minhas.
Tudo isso aprendi nas últimas
horas dos últimos dias, um estirão indiferenciado em que dormimos e acordamos
monotemáticos. Aprendi a me deter em nada, demorando-me somente no fluxo e
certo de que não me trapaceava, mas ajudava a superar o momento.
Então houve esse estalo: o que
importa é o momento, como se um microorganismo de repente devolvesse a escala
da humanidade, ameaçando-a com febre, tontura e falta de ar e empurrando-a ao que
interessa antes que seja tarde: companhia, amor, o cuidado com os outros, a
proteção dos mais velhos.
Aprendi a estar mais atento
para o derredor, um mundo que eu via de relance ao chegar ou sair, que passava
velozmente pela janela dos meus óculos e se fixava como borrão na paisagem da
memória. A vida como um retrato dos instantes subitamente forçada a parar, uma
máquina que não somente pifasse, mas se recusasse a funcionar como antes, deixando
para trás o jeito antigo de fazer as coisas e afirmando na partida: esse mundo
não existe mais.
O “corona” – permito-me certa
intimidade com a doença depois de tanto convívio – sequestrou o banal e impôs um
novo normal: retração, recolhimento, desconfiança. Mas também conexão.
A dimensão da casa é maior e
menor depois da pandemia: cada família reduzida a um mínimo, três ou quatro
pessoas confinadas, e cada pessoa encasulada em si mesma, mas tudo mais
interligado.
Dependemos uns dos outros mais
agora do que antes, nem que seja para ajudar a contar os grãos de feijão
espalhados no meio da sala como maneira de derrotar a morte pelo cansaço.
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