Não tem sido fácil sonhar. Digo,
sonhar com coisas que não pareçam angustiantes. Há dias tenho o mesmo sonho, um
gato me ataca enquanto tento alimentá-lo. Acordo sobressaltado. Quando volto a
dormir, sonho com uma tia já morta e um tio eletricista dançando lambada na sala
ao som de Beto Barbosa.
Não faz sentido, eu sei. No
fundo, queria mesmo era sonhar jogando baralho com a vó enquanto a gente come cuscuz
na mesa da cozinha, mas os sonhos têm essa parte chata: são ingovernáveis. Assumem
um ritmo e conteúdo próprios, aleatórios, aparentemente desconectados das horas
cotidianas.
Desde o início da quarentena, os
meus sonhos pioraram. Não sei se posso usar essa palavra para me referir a meus
próprios sonhos: piorar, como se houvesse bons sonhos e maus sonhos, e estes
fossem de inteira responsabilidade de quem os tem. Quando entro naquele estágio
profundo do sono, não sou mais eu. E ainda sou. Por isso acordo de ressaca, cheio
dessa matéria estranha que gruda no corpo.
Volta e meia, no entanto, emergem
essas figuras de um tempo antigo. Amigos da escola, lugares onde morei quando tinha
seis anos e depois 14. Um cachorro que morreu atropelado. Um brinquedo atirado
no canto da cozinha instantes antes de uma briga. A porta do quarto dos meus pais
fechada enquanto jogo bola no corredor e meus irmãos veem TV.
São costuras de espaços e anos diversos,
retalhos de passagens que eu não encarava desde muito antes de me tornar
adulto. Neles, me sinto como um visitante, alguém que chega de viagem de uma época
futura e volta para contar ao passado como tudo se passou, com o perdão da redundância.
Como se o confinamento prolongado empurrasse para trás, para baixo, para antes.
Foi assim ontem, por exemplo. Sonhei
com o cômodo escuro da casa onde vivia uma mulher chamada Antônia. Era louca e
velha, e por vezes desafiávamos uns aos outros a entrar pela porta e a sair
pelo quintal, correndo sem olhar pros lados por receio de que Antônia surgisse de
um armário e tomasse um de nós pela mão, conduzindo para dentro do vão mais escuro.
Mas nem sempre é desse jeito, e
ocorre também de sonhar com coisas triviais, entretido ao preparar uma vitamina
de abacate, trocar uma lâmpada ou passar uma camisa branca cujas dobras jamais se
desfazem.
Ao despertar, lembro de um
livro que guardo atrás de outro livro. Um de capa branca com estrias vermelhas.
Nessa história, uma escritora fala sobre a natureza do sonho das pessoas. Ela se
pergunta: com que sonhavam os alemães a quem a mão do terror poderia tocar no
meio da noite ou à luz do dia? E responde: eram sonhos turbulentos, de aflição
e medo.
Eu não estava interessado nisso.
Primeiro porque me sinto cansado de tudo e enfastiado ante a rotina de atualizações
de mortes, todo dia um degrau acima, todo dia à mercê da semana seguinte, esta
sim mais aguda e certamente mais mortal que a anterior e assim sucessivamente. Segundo
porque todos já vivemos nosso próprio tipo de distopia política e experiência totalitária
tropicalizada.
Então, quando não estou
sonhando péssimos sonhos ou me ocupando com bobagens do dia a dia, prefiro imaginar
como seria se o Brasil de 2014 não tivesse acreditado que a alegria nas pernas venceria
a cintura sem molejo dos teutões.
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