Pular para o conteúdo principal

Diário da quarentena (parte 4)



De repente, os objetos da casa começaram a enguiçar. Primeiro o computador, depois o celular, como numa revolta do mundo inanimado, que aproveitou a quarentena para mostrar que estamos à mercê de coisas, e essas coisas têm vida própria.

Ontem foi a vez da geladeira, que já vinha dando sinais de que, mais dia, menos dia, pediria a conta dos trabalhos forçados por quase dez anos ininterruptos e finalmente descansaria, sem direito a aposentadoria após tanto tempo aguentando vasilhas de feijão azedo esquecidas por meses num canto da prateleira e fatias de cebola cortadas e jamais usadas.

Antes, porém, o ventilador, num arroubo juvenil, recusou-se a funcionar por três horas, num piquete que entendi como recado político claro: naquela noite abafada de Fortaleza, sua importância era vital. Ele sabia disso. Eu também.  

Mancomunado com o ar-condicionado, o eletrodoméstico impôs-se uma operação tartaruga, e suas hélices não se moveram por muito tempo, me obrigando a tomar cinco banhos num intervalo de poucos minutos.

Mais experiente da casa, o aparelho de ar, por sua vez, calhou de apenas espalhar a mornidão do quarto, duplicando a sensação de que a cidade era uma chaleira prestes a atingir o estágio máximo de cozimento e nós, pequenos cubos de batata doce amolecendo a cada grau centígrado que aumentava.

Certo de que essa sedição de objetos era uma tentativa de me arrancar do poder exercido com mão de ferro há mais de duas décadas, precisei redobrar os cuidados. Pedi uma reunião privada com a máquina de lavar recém-comprada depois que a anterior, muito velha, caíra de exaustão.

Com voz melosa, prometi-lhe que, se tivesse o seu apoio contra os “revoltosos da quarentena”, como eu os havia apelidado, reduziria o regime de lavagens de panos sujos a apenas duas vezes a cada 15 dias. E, golpe baixo, fiz crer também que, daquele momento em diante, não a obrigaria a enxaguar mais as minhas cuecas.

Saí daquele encontro com a certeza de que conseguira uma aliada naquele cabo de guerra usando a mesma retórica melíflua que utilizava para convencer os atendentes de telemarketing quando queria um desconto. Fui dormir.

No dia seguinte, no entanto, a TV, que havia dormido saudável, não respondeu aos meus comandos. O videogame, idem. Tampouco as luzes do quarto acenderam. Testei o liquidificador: igualmente mudo.

Corri então ao micro-ondas, um amigo de longa data que eu comprara em 12 parcelas e que certamente compreenderia a urgência daquela situação e se colocaria a meu lado.

Acionado por meio do painel, grunhiu algo inaudível e mergulhou em silêncio. Insisti e digitei a função para descongelamento de carnes. Nada. Era uma guerra declarada. As máquinas tinham se rebelado.

Terminei o dia acuado na varanda, atrás de uma barricada formada por caixas de sapatos e de livros empilhados que se amontoavam até bem alto. No meio, retirei um volume, abrindo um vão que me permitia enxergar até o final do corredor, onde a sanduicheira, o chuveiro elétrico e o abajur sussurravam sobre planos inconfessáveis. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d