De repente,
os objetos da casa começaram a enguiçar. Primeiro o computador, depois o celular,
como numa revolta do mundo inanimado, que aproveitou a quarentena para mostrar que
estamos à mercê de coisas, e essas coisas têm vida própria.
Ontem
foi a vez da geladeira, que já vinha dando sinais de que, mais dia, menos dia, pediria
a conta dos trabalhos forçados por quase dez anos ininterruptos e finalmente descansaria,
sem direito a aposentadoria após tanto tempo aguentando vasilhas de feijão azedo
esquecidas por meses num canto da prateleira e fatias de cebola cortadas e jamais
usadas.
Antes,
porém, o ventilador, num arroubo juvenil, recusou-se a funcionar por três
horas, num piquete que entendi como recado político claro: naquela noite abafada
de Fortaleza, sua importância era vital. Ele sabia disso. Eu também.
Mancomunado
com o ar-condicionado, o eletrodoméstico impôs-se uma operação tartaruga, e
suas hélices não se moveram por muito tempo, me obrigando a tomar cinco banhos
num intervalo de poucos minutos.
Mais experiente
da casa, o aparelho de ar, por sua vez, calhou de apenas espalhar a mornidão do
quarto, duplicando a sensação de que a cidade era uma chaleira prestes a
atingir o estágio máximo de cozimento e nós, pequenos cubos de batata doce amolecendo
a cada grau centígrado que aumentava.
Certo
de que essa sedição de objetos era uma tentativa de me arrancar do poder exercido
com mão de ferro há mais de duas décadas, precisei redobrar os cuidados. Pedi
uma reunião privada com a máquina de lavar recém-comprada depois que a anterior,
muito velha, caíra de exaustão.
Com voz
melosa, prometi-lhe que, se tivesse o seu apoio contra os “revoltosos da quarentena”,
como eu os havia apelidado, reduziria o regime de lavagens de panos sujos a
apenas duas vezes a cada 15 dias. E, golpe baixo, fiz crer também que, daquele momento
em diante, não a obrigaria a enxaguar mais as minhas cuecas.
Saí daquele
encontro com a certeza de que conseguira uma aliada naquele cabo de guerra
usando a mesma retórica melíflua que utilizava para convencer os atendentes de
telemarketing quando queria um desconto. Fui dormir.
No dia
seguinte, no entanto, a TV, que havia dormido saudável, não respondeu aos meus
comandos. O videogame, idem. Tampouco as luzes do quarto acenderam. Testei o liquidificador:
igualmente mudo.
Corri
então ao micro-ondas, um amigo de longa data que eu comprara em 12 parcelas e que
certamente compreenderia a urgência daquela situação e se colocaria a meu lado.
Acionado
por meio do painel, grunhiu algo inaudível e mergulhou em silêncio. Insisti e
digitei a função para descongelamento de carnes. Nada. Era uma guerra declarada.
As máquinas tinham se rebelado.
Terminei
o dia acuado na varanda, atrás de uma barricada formada por caixas de sapatos e
de livros empilhados que se amontoavam até bem alto. No meio, retirei um volume,
abrindo um vão que me permitia enxergar até o final do corredor, onde a sanduicheira,
o chuveiro elétrico e o abajur sussurravam sobre planos inconfessáveis.
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