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Diário da quarentena (parte 2)


Uma semana se passou desde que saí de casa pela última vez, de modo que precisei inventar razões para ir até a mercearia da esquina, único ponto de concentração de pessoas num raio de muitos quilômetros.

Como faltasse banana em casa, calhei de que a fruta era necessidade básica, um item vital sem o qual o combate ao coronavírus fracassaria no ambiente doméstico, colocando a vida de todos em risco, algo como uma máscara ou álcool em gel. Era mentira, claro.

Na verdade, eu só queria ver gente, não importava quem fosse, desde que fosse gente de verdade e não rostos em imagens de baixa qualidade na tela do celular ou do computador tremulando ou congelando em caretas sempre que a conexão caía ou perdia força.

Desci à bodega, que é o termo mais adequado para chamar aquele espaço no qual garrafas de cachaça dividem os cestos de compras com pacotes de macarrão e latas de feijoada. Esperava encontrar os mesmos bêbados de sempre, homens mais velhos e também jovens cuja rotina etílica se cumpria rigorosamente dia a dia, sem interrupção, das 8 horas da manhã até o anoitecer, com intervalos para o almoço e café da tarde.

Mas, para vergonha do presidente da República, mesmo os cachaceiros do meu bairro tinham entendido a gravidade do momento e levado a pandemia a sério, esvaziando aquela quina de rua e enfurnando-se em suas residências, onde certamente experimentavam uma lenta agonia de privação sem reclamar dos sacrifícios.

Sozinho na entrada, entendi que a quarentena havia chegado a todos. Bati palmas, que é como o cearense sem noção se comunica com qualquer pessoa que não esteja esperando visitas em horários inadequados. Com ares de quem despertava de um sono antigo, o dono apareceu coçando a barriga. Pedi licença e entrei.  

Passei a meia hora seguinte escolhendo umas poucas coisas, entre elas biscoitos e pão, além de bananas, claro, motivo pelo qual eu havia rompido a clausura domiciliar para me aventurar numa cidade que parecia fantasma ao meio-dia.

Eis que, entre a pressa e a vergonha, entra o Magalhães, um homenzarrão de mais de 50 anos que faz consertos de toda sorte na vizinhança. Passou por mim vexado, cumprimentando apenas com aceno de cabeça, sem qualquer proteção que não a de Deus, como me diria depois.

Foi ao fundo das prateleiras, de onde voltou abraçado a uma garrafa de aguardente. Carregava-a como uma mãe embala um filho recém-nascido, ninando-a em direção ao caixa com medo de que acordasse. Antes, disse que tinha trabalhado durante toda a manhã reparando o chuveiro de Carminha, uma senhora já muito velha que mora na vila aqui perto e a quem fazia visitas de tempos em tempos, cobrando sempre o mínimo. Era o primeiro dinheiro que recebia desde o início dessa coisa de vírus. Pagou e saiu.

Fui pra casa carregando minhas sacolas e pensando em Magalhães, no prazer que sentiria ao beber essa dose de cana em casa, a TV ligada em algum DVD de pagode ou sertanejo “sofrência”, a porta da sala aberta para o mundo. Isolado, mas não fechado, enquanto esperava que um ou outro lhe pedisse ajuda com o que quer que fosse, uma pia entupida, uma tomada escangalhada ou um ventilador que pifasse no meio da noite.

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