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Sem defeitos

Em que momento a gente passou a dizer que fulano ou fulana é “sem defeitos” em tom elogioso, ainda que de brincadeira, mas de partida anunciando essa pretensão de perfeição, de surpreender noutra pessoa não um equilíbrio mal-assentado, e sim uma projeção edulcorada e politicamente correta de justeza de caráter e infalibilidade? Desculpem a frase longa, mas é isso. Sem defeitos, que é o mesmo de isento de qualquer mácula ou mancha moral, tão reto e firme de espírito como se suas convicções houvessem passado por duas lavagens com sabão em pó e depois fossem estendidas na varanda para secar. Porque é disso que estamos falando quando o sicrano se vira e sapeca: mas ele é sem defeitos, admitindo-se aí toda a carga de exagero e licença poética que a fala carrega. Ora, se a gente sabe de antemão que ninguém é uma tábua, por que cargas d’água a expressão sem defeitos, que leva em si uma penca deles, se converteu num chavão lacrador de rede social e senha para autorizar a canonização ...

Antes da festa

Escrevo antes da festa, madrugada alta, computadores ainda iluminados. Uma chuva que bateu e já foi, abrindo caminhos na sexta que é também ela o começo de um quê. Depois vem o sábado e adiante o domingo, enfileirados, casal indistinto. Dele jamais se sabe, dela menos ainda, de modo que as horas do início se embaralham. Lembro quando o tempo era outro. Lembro do bloco e da rua apinhada e na rua desse momento em que bebi além da conta e dancei talvez certo de que ensaiava comigo um passo torto cujo ritmo aprendi. Desaprendi. Tornei a aprender, e agora sei de mim tanto que tento me fazer caber dentro desse corpo. Agora começa tudo de novo, as horas inaugurais feito uma corrida espacial, gente que se encapsula e é atirada num módulo lunar para muito depois de qualquer fronteira. Carnaval de projetar-se ao mais distante. De andar a esmo, vadiar, deixar-se aceso para mais de cinco horas, empenhados que estamos sempre em descer ao de dentro e em seguida voltar trazendo de lá restos de e...

Novas fantasias de carnaval

Paralisado por uma dúvida existencial sobre o que vestir na folia, fui até uma loja no Centro comprar fantasia de Carnaval para a festa que se avizinha e notei entre os presentes no estabelecimento um gosto sortido por novidades, coisas que eu nunca tinha visto antes e adereços até então desconhecidos – diria mesmo extravagantes. Procurei então ajuda com uma vendedora, que me disse sorridente que, a pedido do gerente, precisou renovar as prateleiras de última hora depois de um surto de procura por peças que antes estavam encalhadas ou cuja fabricação jamais fora cogitada por nenhuma costureira ou artesã de Fortaleza. E citou como exemplo a fantasia de Fiscal de *. Ante minha expressão de surpresa, ela cuidou em explicar em pormenores. Vendida a módico R$ 1,99, continuou a simpática funcionária da loja, a indumentária, a mais barata entre todas, permite ao brincante desfilar na avenida como um autêntico fiscal do * alheio, que é o cara ou a mina que chega perto e pede licença ao fol...

Cancelar ou chancelar?

Na dúvida entre chancelar ou cancelar tal pessoa que eu considerava bacana, caí na bobagem de esperar, ponderando prós e contras e tentando encontrar um meio-termo entre qualidades e defeitos. Mas esse exercício só me fez perder tempo, e a crista da onda passou levando consigo potenciais seguidores. Esse foi o meu pecado. Apenas muito tardiamente resolvi cancelar o cara, e então me pus a xingar a figura nas redes, me empenhando em críticas cada vez mais virulentas que eu fazia chegar a todos por meio do meu perfil no Twitter, a rede social perfeita para a propagação febril desse tipo de ação raivosa. As notificações pipocaram em instantes, não aplaudindo minha ojeriza e retórica inflamada, mas pedindo que eu revisse minha postura radical, já que o fulano havia se retratado minutos antes e explicado tudo numa postagem muito longa noutra rede que não costumo frequentar. Rapidamente passei a redigir eu mesmo o meu próprio mea culpa, admitindo que havia cancelado o dito-cujo sem ...

Mudar de óculos

Trocar de óculos é uma experiência. Altera o rosto. De repente, você é outra pessoa, os olhos se amiudando atrás de uma armação diferente da que costumava usar, o incômodo de parecer um alheio, um duplo de si – mas quem? A pessoa do óculos é e não é você, como o gêmeo siamês naquele retrato da festa de 15 anos. Eu a conheço? Talvez não, talvez sim. Vejo-a na imagem e lembro de dez anos atrás, quando passou no oculista logo depois de dilatar a pupila e sair trôpego pela avenida enxergando apenas borrão. O segundo par: desenho fino, uma bossa nos sobrolhos e as hastes num marrom esmaltado cafona. Tinha 30 anos então, mas parecia ter 40. Sempre foi velho. Bola pra diante. Naquele momento, a moda era aparentar mais idade, mas agora que tem mais idade, escolheu um modelo mais jovial. Nada colorido ou de aro muito adelgaçado, porque pode torcer e se partir com facilidade, basta esquecê-lo no sofá.  Queria um mais barato, então indicaram a loja dos evangélicos, ali no Centro. Foi até ...

Bolsonaro e o casamento

A metáfora do casamento é recorrente na fala de Jair Bolsonaro assim como a do futebol era na de Lula. Ambos buscam a mesma aplicação da palavra, ou seja, simplificar a comunicação, aproximando-se do eleitorado e rebaixando a mensagem a categorias de fácil assimilação, ainda que sob o risco de falsear a realidade. Bolsonaro “matrimonializou” a política, agora convertida em espaço das mesmas vicissitudes a que estão sujeitas as relações amorosas: altos e baixos, DRs, traições, ímpetos e rompimentos – sua gramática é afetiva, restrita ao enlace entre duas pessoas, e seu universo é o do privado e da alcova. Assim, o presidente anuncia noivado com uma candidata a secretária, que estuda se quer ou não o engate oficial. Por enquanto, divertem-se os dois, estão apenas namorando. A cafonice não para por aí. Há também os estremecimentos e solavancos típicos de qualquer casamento, garante o presidente, que transformou esse léxico em principal marca do governo, a ponto de a comunicação o...

On/off

Num intervalo de poucos dias, li dois textos que fazem alusão a supostos benefícios da desconexão digital, um detox de redes e aplicativos que tem por finalidade purificar a mente e alinhar os chacras, purgando as toxinas da alma e supostamente restabelecendo um equilíbrio próprio de que o corpo necessita.  Conto minha própria experiência. Por seis dias, estive longe do celular e da internet. No máximo, TV, e para ver algum filme. Nada de Whatsapp, Twitter ou Facebook, que já aposentei quase que totalmente. No computador, apenas processador de texto. Como quase tudo, no começo foi difícil. Sentia a todo instante a comissão de checar emails ou mensagens. De tempos em tempos, queria atualizar a página do jornal para saber se alguma tragédia se abatera sobre o país. Apesar da pressão, consegui me segurar. Usuário inveterado de Twitter, tive dificuldades para me afastar. A todo momento, tinha a impressão de que uma festa, para a qual eu não fora convidado, se desenrolava muit...