Pular para o conteúdo principal

Antes da festa

Escrevo antes da festa, madrugada alta, computadores ainda iluminados. Uma chuva que bateu e já foi, abrindo caminhos na sexta que é também ela o começo de um quê. Depois vem o sábado e adiante o domingo, enfileirados, casal indistinto. Dele jamais se sabe, dela menos ainda, de modo que as horas do início se embaralham. Lembro quando o tempo era outro. Lembro do bloco e da rua apinhada e na rua desse momento em que bebi além da conta e dancei talvez certo de que ensaiava comigo um passo torto cujo ritmo aprendi. Desaprendi. Tornei a aprender, e agora sei de mim tanto que tento me fazer caber dentro desse corpo.

Agora começa tudo de novo, as horas inaugurais feito uma corrida espacial, gente que se encapsula e é atirada num módulo lunar para muito depois de qualquer fronteira. Carnaval de projetar-se ao mais distante. De andar a esmo, vadiar, deixar-se aceso para mais de cinco horas, empenhados que estamos sempre em descer ao de dentro e em seguida voltar trazendo de lá restos de enfeites e partes móveis que jurávamos guardadas para o nunca mais. 

O nunca mais revogado, isso é a festa, o repertório de gesto inapropriado, a cadência de um calar sem fala, a luz projetada dessa varanda que pisca a intervalos regulares como sonda de navio embarcado, navio a pique, navio tomado de assalto no meio da noite. Nós, os piratas sublevados de uma tripulação que avança sem rumo a furar ondas de perder de vista. Olhos injetados de rubor.

Escrevo antes da festa, antes do sábado, antes da primeira bebida que fiz chegar numa bandeja e noutra mais que pedi porque insistia em que a noite preliminar fosse muito bem servida de toda a cerveja. Antes da segunda-feira, da terça e também antes do fim. Escrevo antes de terminar o começo e se finar por falta o avesso que todos somos quando já é hora e os mantos escorregam sobre ombros como se puxados pela gravidade, deixando à luz morna da noite braços, pernas e tudo o mais que trazemos quando estamos fora de hora e nos bolsos se perderam as entradas para o espetáculo de agora.  

Antes de ir embora e na casa deitar finalmente, esticando as pernas no sofá da sala de piso pisado. Antes de abrir a geladeira e checar com falso rigor o que se esconde atrás da panela com brigadeiro de colher, a caixa de leite e a garrafa desse vinho barato que escolhemos juntos porque o doce nos agradava mais que o preço, o paladar sem jamais haver se habituado ao travoso da elegância de uma marca mais seleta.

Então a muito custo abro a garrafa. Na varanda ela me pede que apague a luz porque é hora de termos um canto e um tempo só nossos, e lá nos pomos sentados, as pernas entreabertas, as duas taças súbito inclinadas no tampo em falso.

E assim começamos, repetidas vezes. Escrevo antes de ritualizarmos o encontro e de encontrarmos no rito razões bastantes para o que há dentro dela que chega até mim e de mim até ela, cruzando-se antes e depois da festa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d