Em que momento a gente passou a
dizer que fulano ou fulana é “sem defeitos” em tom elogioso, ainda que de
brincadeira, mas de partida anunciando essa pretensão de perfeição, de
surpreender noutra pessoa não um equilíbrio mal-assentado, e sim uma projeção
edulcorada e politicamente correta de justeza de caráter e infalibilidade?
Desculpem a frase longa, mas é
isso. Sem defeitos, que é o mesmo de isento de qualquer mácula ou mancha moral,
tão reto e firme de espírito como se suas convicções houvessem passado por duas
lavagens com sabão em pó e depois fossem estendidas na varanda para secar. Porque
é disso que estamos falando quando o sicrano se vira e sapeca: mas ele é sem
defeitos, admitindo-se aí toda a carga de exagero e licença poética que a fala
carrega.
Ora, se a gente sabe de antemão
que ninguém é uma tábua, por que cargas d’água a expressão sem defeitos, que
leva em si uma penca deles, se converteu num chavão lacrador de rede social e senha
para autorizar a canonização precoce de um novo papa digital que, horas depois,
será destituído de sua santidade e atirado à fogueira sem extrema unção ou
perdão eclesiástico?
Tomem o BBB como exemplo. Eu não
vejo BBB, e portanto meu lugar de fala (riso) é limitado. E vejo BBB, de modo
que me sinto à vontade pra analisá-lo. Não vejo porque não assisto pela TV,
chego em casa cansado e ainda preciso conversar com o gato, abrir a geladeira e
olhar demoradamente as garrafas, à espera de que a brisa refrigerada faça seu
milagre e amenize o calor da cidade. E vejo porque tenho rede social, que é
como uma televisão, mas sem o Bruno de Luca aparecendo toda hora.
Pra quem está vendo ou não está
vendo, o BBB deste ano tem ensinado uma porção de coisa a muito macho, mas sobretudo
a muita gente que se supunha sem defeito, homem e mulher. De repente, não
escapa ninguém, e onde antes havia a superfície alva do lençol sobre a cama,
agora respingam as nódoas. Uma aqui, outra acolá. Defeitos, defeitinhos e
defeitões.
Parte do jogo. Bem ou mal, a
finalidade do programa é esfregar nossa mesquinhez na nossa cara 24 horas por
dia, e com isso ainda faturar uma grana com anunciantes, elegendo um vencedor,
que terá chegado ao fim não porque é sem defeitos, mas porque os demais eram
mais defeituosos ainda.
O BBB é um desfile sistemático
e ininterrupto do que a virtualidade passou a tratar como chaga: a impureza, a
falha, o cantinho sujo da alma. É uma Sapucaí de defeitos, uma academia da
incorreção, uma festa junina do vacilo. Tem defeito pra todos os gostos e
colorações políticas.
Defeitos de direita, de
esquerda e de centro. Defeitos de amor e de moral. Defeitos de hábito e de
casa. Defeitos corrigíveis e incorrigíveis. Defeitos adquiridos e inventados.
Defeitos gostosos e insuportáveis. É um painel nacional de defeitos, um
delivery daquilo que menos gostamos em nós mesmos e nos outros.
Daí seu sucesso. Porque temos a
oportunidade rara de exorcizar nosso defeito, esse plantado fundo e cuja raiz a
gente sequer adivinha. Diante da tela, a gente finge que elimina e expulsa o
outro de uma competição, mas sabe que, no fundo, é um bocado de nós ali que se
expõe, numa catarse coletiva.
Talvez seja isso mesmo. O BBB é
o teatro vivo dos nossos defeitos, onde todo mundo fica nu. Nesse sentido, é o
exato oposto da rede, lugar de rigoroso controle da autoimagem. No BBB nenhuma imagem
fabricada resiste. Nenhuma vitrine de bom-mocismo se sustenta.
Por isso a gente se diverte com
o “feministo”-machista, o ecólogo que desperdiça água e a empoderada que apoia
o homofóbico. Então, pra mim, já valeu a pena ter visto e não ter visto BBB, com
ou sem defeito.
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