Pular para o conteúdo principal

On/off


Num intervalo de poucos dias, li dois textos que fazem alusão a supostos benefícios da desconexão digital, um detox de redes e aplicativos que tem por finalidade purificar a mente e alinhar os chacras, purgando as toxinas da alma e supostamente restabelecendo um equilíbrio próprio de que o corpo necessita. 

Conto minha própria experiência. Por seis dias, estive longe do celular e da internet. No máximo, TV, e para ver algum filme. Nada de Whatsapp, Twitter ou Facebook, que já aposentei quase que totalmente. No computador, apenas processador de texto. Como quase tudo, no começo foi difícil. Sentia a todo instante a comissão de checar emails ou mensagens. De tempos em tempos, queria atualizar a página do jornal para saber se alguma tragédia se abatera sobre o país. Apesar da pressão, consegui me segurar.

Usuário inveterado de Twitter, tive dificuldades para me afastar. A todo momento, tinha a impressão de que uma festa, para a qual eu não fora convidado, se desenrolava muito perto. Eu podia ouvir o ruído que as milhares de postagens causavam enquanto eram disparadas no microblog, levando e trazendo notícias que depois eu descobriria que não tinham a menor importância. Resisti.

Dois dias depois, não sentia tanta dificuldade em deixar essas ferramentas de lado, mas isso não é grande coisa. Seguiram-se mais 24 horas, e então eu descobri algo engraçado e mais difícil de perceber: o ritmo de antes. Um jeito antigo, à beira da extinção ou fora de moda, de passar o tempo, que eu conhecia porque sou de outra época, mas que havia esquecido porque o fluxo hiperconcentrado das atividades impõe essa ligeireza como tática de sobrevivência e método para ganhar destaque em meio à barulheira do cotidiano virtual. Algo como: se alguém gritar, grite mais alto.

Sem as redes, no entanto, é como se o dia recobrasse uma linearidade e voltasse a se dividir entre passado, presente e futuro, e não apenas esse presente contínuo e iridescente, como acontece quando estou conectado e sinto como se tudo fosse um único estirão de minutos no curso do qual as atividades que requerem mais envolvimento, presença e concentração acabam sendo deixadas para escanteio.

A ansiedade logo passou. Já não sentia o desejo de verificar notícias freneticamente. Perdi o medo de estar fora da festa. Aos poucos, passei a dormir melhor e a me dedicar mais a coisas que são importantes pra mim, como a leitura. O efeito era concreto. Eu tinha desacelerado.

Nessa mesma época, um amigo me perguntou como eu fazia para ler ao menos três livros por mês, média das obras que me forço a encarar, até para não sucumbir ante o apelo do digital, que cria essa noção equivocada de onipresença cujo resultado imediato é a Síndrome de Peter Pan, uma fadiga de informação que se propaga na esteira da presentificação levada a extremos nunca vistos.

Eu disse que, embora me esforçasse, nem sempre conseguia, também me via tendo de lidar com as mesmas dificuldades e frustrações, exatamente porque temos muitas demandas hoje – muitos canais de distração, ofertas e ocupações, cada um exigindo sua cota de energia e, mais importante, de tempo, que, como todos sabemos, não é relativo quando se trata de colocar as coisas em ordem.

Antes de ler esses textos que expunham ganhos inegáveis com a desconexão, eu havia calculado quanto tempo eu costumava passar nas redes e como ele era gasto. Eu lia jornal? Escrevia? Perambulava à toa por FB e Twitter? Foi aí que entendi que a maior fatia do meu dia (nem demorei muito para chegar a essa conclusão) era consumida por um zapear ziguezagueante entre aplicativos, sem me deter muito em nenhum deles, saltando de um assunto para outro e acumulando o máximo de informação que podia sobre um leque diverso de temas, mesmo quando sua relevância era questionável e compreendê-los a fundo, uma demonstração prática de falta de foco e absoluta falta do que fazer.

Resumo da ópera: ao cabo desse processo mais pessoal de redescoberta de uma rotina livre dos embaraços comuns a um dia a dia sempre presente nas redes, eu me perguntei não sobre as vantagens da desconexão, que me pareciam evidentes àquela altura, mas se podemos estar de fato desconectados por tanto tempo sem prejuízo para nossas relações de trabalho e interações sociais. Não sei a resposta.

No entanto, encerrei essa temporada certo de que precisava repensar toda uma organização particular, redefinindo o ecossistema de informação no qual eu estava mergulhado  e recalibrando as horas on e off, de modo que possa conciliar dois aspectos essenciais da vida: o silêncio/capacidade contemplativa, que é a primeira vítima num cenário de comunicação hiperconectada e veloz cujo efeito colateral é a perda gradual de sensibilidade. E uma proximidade (em algum grau) com as redes/plataformas digitais. É pedir muito?

Pelo visto, é, sim, porque ainda não entendi como posso solucionar o problema, de tal sorte que, à falta de uma resposta eficaz, vou tentando e errando. Agora, por exemplo, alterno 48h/24h – dois dias profundamente dedicado às atividades off, e um no qual priorizo estar online, seja escrevendo, seja pesquisando ou lendo sobre os assuntos da vez.

Isso funciona? Não sei ainda, mas é minha aposta para um problema que tenho enfrentado ultimamente e cada vez de maneira mais aguda: o déficit de leitura/contemplação/ausência, de um lado, e de outro a superexposição e a permanência virtual crescentes. Eu me refiro à experiência de estar fora, de visitar um outro tempo e vivê-lo integralmente, a fim de sentir como as horas se passam longe do frenesi que já se tornou habitual. Não há nada de poético nem saudosista nisso. 

É um esforço de redesenho da rotina e de reorganização cognitiva com o qual apenas agora começo a me preocupar na real porque os riscos de ignorá-lo e fingir que as coisas estão normais certamente cobrará um preço em algum momento. É difícil, claro, do contrário eu não teria ficado todo o dia hoje (ontem) imerso neste ambiente dentro do qual o dia escorrega e tudo parece movediço, mais ou menos como um shopping, onde as luzes jamais oscilam e a própria ideia de passagem é desencorajada constantemente, de maneira que instintivamente acreditamos estar vivendo o mesmo instante, que se repete e repete e assim por diante.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d