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Cancelar ou chancelar?


Na dúvida entre chancelar ou cancelar tal pessoa que eu considerava bacana, caí na bobagem de esperar, ponderando prós e contras e tentando encontrar um meio-termo entre qualidades e defeitos. Mas esse exercício só me fez perder tempo, e a crista da onda passou levando consigo potenciais seguidores. Esse foi o meu pecado.

Apenas muito tardiamente resolvi cancelar o cara, e então me pus a xingar a figura nas redes, me empenhando em críticas cada vez mais virulentas que eu fazia chegar a todos por meio do meu perfil no Twitter, a rede social perfeita para a propagação febril desse tipo de ação raivosa. As notificações pipocaram em instantes, não aplaudindo minha ojeriza e retórica inflamada, mas pedindo que eu revisse minha postura radical, já que o fulano havia se retratado minutos antes e explicado tudo numa postagem muito longa noutra rede que não costumo frequentar.

Rapidamente passei a redigir eu mesmo o meu próprio mea culpa, admitindo que havia cancelado o dito-cujo sem pensar direito e que minhas palavras tinham sido um ato irrefletido contra alguém que sistematicamente tinha dado provas de sua dignidade, assumindo sempre a defesa dos depauperados e minorias, o que era mentira. Mal havia cancelado o cancelamento, no entanto, uma terceira via de usuários que se mantivera calada até então passou a problematizar o “chancelamento súbito” baseado unicamente no relato do agressor, um ponto de vista por si só duvidoso, exatamente como o são todos os pontos de vista em qualquer época e tempo.

Confuso ante o impasse que se esboçava, comecei a escrever um novo texto, agora cancelando o cancelamento do cancelamento e restabelecendo uma censura, não inquisitória como a primeira, mas mais branda e com brechas para uma escapada estratégica caso houvesse uma quarta onda que me obrigasse a me reposicionar mais uma vez nas redes. E não é que ela veio?

No dia seguinte, nova tropa de choque me fez ver que o cancelamento, embora disfarçado de reprimenda suave, condenando o sujeito a trabalhos forçados numa ilha de ostracismo virtual, fora uma medida extrema que igualava os usuários que o defendiam aos robôs que espalham ódio na internet.

Respondi que achava essa avaliação excessiva e mesmo injusta comigo, e até ameacei um cancelamento em bloco, colocando no “mute” todo um grupo que insistia em instaurar uma zona cinzenta entre o bom e o mau comportamento, entre o silenciamento e o diálogo. Desisti da ideia não porque tivesse dúvida, mas apenas porque receei que, dali a algumas horas, uma quinta vaga de opiniões poderia se formar e me arrastar como uma tsunami na qual eu teria de surfar, adaptando meu senso crítico aos consensos de ocasião.

Então disse que pensaria no assunto e interrompi a conversa, encerrando esse debate e imediatamente entrando noutro sobre o cancelamento de um podcast muito legal e cujas edições eu devorava, mas que caíra em desgraça sabe-se deus por quê. Como não havia tempo para entender as mil e uma nuances dessa discussão, que envolvia disputa de classe, feminismo, ideologia e outras questões, me limitei a ler duas ou três análises superficiais de gente em quem eu confiava e em seguida decretei: está cancelado.

Seguiu-se breve momento de alívio pessoal em aderir ao que era a maioria, quebrado apenas quando uma mensagem no privado me interpelava em termos incisivos sobre as minhas razões para cancelar o podcast com base nesses argumentos e não naqueles. Foi aí que entendi que entre chancelar e cancelar há somente uma letra de distância e que o melhor para mim seria deixar sempre dois textões prontos para qualquer eventualidade: um contra e outro a favor, que eu alternaria conforme o momento e a direção dos ventos.

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