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Crítica de "Democracia em vertigem"

Entre as qualidades e defeitos de Democracia em vertigem , novo documentário de Petra Costa que estreou na Netflix no mesmo dia em que Sergio Moro depunha no Senado, cito os dois principais: é um alentado resumo dos fatos políticos mais relevantes dos últimos 15 anos no País. Mas é também uma narrativa que adere facilmente a um ponto de vista , o que talvez acabe comprometendo seu alcance e propósito, qual seja: o de falar a um número amplo de pessoas além dos círculos de convertidos. A obra parece se satisfazer em comunicar-se com a sua bolha. É, de longe, o seu elemento mais frágil. Às qualidades, que não são poucas: Costa é eficaz ao repassar o processo de formação da política nacional, ancorando-o em fatos históricos e avançando década a década até chegarmos ao período pós-redemocratização e aos eventos que se seguiram às eleições de Lula em 2002 e 2006 e de Dilma Roussseff em 2010 e 2014. Outro acerto do filme: sob perspectiva inédita, apresenta a antessala de nossa crise ma...

Rito

Era 29 de dezembro de 2018 quando escrevi: “No mar há um instante em que nenhum vento sopra, nenhuma onda quebra, nenhum mergulho se ouve. É essa a paisagem que vejo daqui”. Daqui era o lugar de então, um espaço movediço do qual falava naquele finalzinho de ano em que me recusei a fazer essa operação de olhar em torno e tentar apreender num só movimento o todo que me abarcava. Foi quando essa imagem se impôs, a do corpo flutuante, suspenso como se sem peso, parado em meio ao cenário de esgotamento numa travessia temporal, a passagem ritualística do calendário.  Atravessei o ano, cruzei-o inteiro e cheguei à outra margem. O mar agora é outro, as toneladas de areia e sedimentos jogadas mecanicamente por braços de tratores às vésperas da festa alteraram o caminho das correntes. As ondas não são as mesmas, tampouco a profundidade. Nele afunda-se tão logo metem-se os pés na água. As pás cavaram sem descanso nos meses que antecederam ao fim, deitando fora uma terra e depo...

Ano bom, ano ruim

Isto não é um balanço, mas a tentativa de entender se o ano foi bom ou ruim. Ou bom e ruim ao mesmo tempo. Ou nem bom nem ruim, mas algo a meio caminho de uma coisa e outra. Ou qualquer nome que possa ter um ano como foi 2019, indefinível por natureza como antes dele foram 2018 e também 2017 e assim retroativamente. Mas o que fez de 2019 um ano como apenas 2019 seria? Nele vivemos todos situações que, ao pé da letra, são constitutivamente ruins, de modo que no geral é possível que a temporada tenha sido péssima para a maior parte de nós, inclusive pra mim, que me vi constantemente entrando na sala dos chefes e pedindo um adicional de insalubridade que me garantisse sustentação financeira para fazer o que vinha fazendo, ou seja, tratando de assuntos que eram como o que resta quando recolhemos o lixo da calçada e sobram aqueles pedaços de coisas nos quais ninguém tem coragem de encostar a mão. Essa foi minha matéria-prima neste ano. O cocô que gruda na sola do sapato de que...

O Natal não pegou

Fui até a esquina e depois dei a volta no quarteirão inteiro, em seguida retornei pra casa por uma rua transversal até finalmente dar de cara com o mesmo portão que estou habituado a abrir todos os dias digitando uma senha de seis dígitos que é a mesma para tudo.  Pela primeira vez na vida sinto como se não estivesse no Natal, mas em qualquer época do ano, esses períodos entre datas nos quais as pessoas nem são carnavalescas nem pascalinas, mas apenas elas, desenfeitadas e à espera de que algo aconteça ou chegue logo outro momento em que se armam de espírito... Junino, por exemplo. Não é o caso de agora, e me pergunto por que diabos o Natal não pegou. O Natal não pegou na padaria, na loja de ferragens e na churrascaria. Não pegou na oficina. Pegou parcialmente no supermercado porque, enfim, é o supermercado, e lá os funcionários dependem de que essa magia efetivamente funcione. Mas mesmo ali o índice de natalinidade é baixo, diria baixíssimo. Está encarapitado no rosto do vend...

Meu país Joaquim Távora

As pessoas estão preocupadas com o novo mapa administrativo de Fortaleza e onde seus bairros devem estar a partir de 2020. Há um temor justificado de irem dormir na Regional II num dia e acordarem na VI no outro. Ou de saírem da I para a XII, numa mudança de escala sem precedentes que traria confusão para os habitantes na passagem do ano, sobretudo se precisarem apanhar um ônibus com destino ao Bairro de Fátima e acabarem descendo no Carlito Pamplona às 3 horas da manhã do dia 1º de janeiro. Do alto da experiência de quem já se mudou 12 vezes de bairro ao longo de quase 40 anos de vida, parte delas em caminhão aberto e debaixo de chuva no meio de uma semana de provas na escola, respondo que se trata apenas de burocracia e mania de novidade, nossas duas maiores vocações depois da energia eólica. Automaticamente, porém, me pus a procurar o meu país Joaquim Távora entre os 119 bairros espalhados por 39 territórios de 12 regionais diferentes. Ainda estava lá: dividia o quadrante ...

Livro secreto

Há dias procuro um livro específico que não sei qual é, mas a bagunça das estantes não tem ajudado. Reviro as pilhas, inspeciono as lombadas, checo atrás das prateleiras abarrotadas e reabro portas de armários há muito fechadas. Nada. Não está lá. É um livro de capa fina, dessas que dobram e amassam facilmente e nas quais há uma infinidade de marcas de dedos de todas as pessoas que manusearam o livro antes de mim, uma cadeia de gestos da qual não sei nada, mas intuo apenas de olhar. São impressões invisíveis, subcutâneas. Se o folheamos, de dentro desprende-se um cheiro antigo, odor de mãos e pele e objetos esquecidos, nódoas que foram se acumulando – uma de café, outra de uma substância que não consigo identificar, mas que associo a manteiga ou a algum produto gorduroso, vinho ou a oleosidade do próprio corpo, que varia conforme a geografia e a hora do dia. Não recordo a história desse livro hipotético. Na verdade, não mantive um fiapo de nada do enredo nem dos personage...

A vida é gatilho

Levo horas assim, na preparação do que virá. Tempo gasto tentando descobrir o que ainda não sei, tatibitate. Paro e retomo. Depois ando pelo corredor, em seguida vou ao banheiro e acendo o cigarro. Sopro pela janela a fumaça azulada, que sobe em espirais e se dissipa, feito caixas de diálogo de histórias em quadrinhos. Decido parar. Cogito sair, mas aonde iria a esta hora? Não há lugar, e o sol castiga neste mês. É preciso inventar uma geografia, mas isso também leva tempo. É custoso. Então planejo a viagem, Porto ou Nápoles, uma cidade mais distante. Icó? Uma passagem. Compro mas não saio. Desisto. Dois anos fora estudando esse tema sobre o qual venho pensando – qual? No caminho da serra encontro uma cruz e nos seus braços pedras enfileiradas colocadas ali por mãos de criança e adulto. É também uma abstração, coisa impalpável. O morto não tem nome naquele pedaço de chão. Celebra-se a morte anônima, que chega sob forma de doença, assassinato ou descuido na estrada. Então cad...