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Conversa com a vó

Nesta semana sonhei com a vó, ou achei que tivesse sonhado, ou gostaria de ter sonhado com ela, não faz tanta diferença assim. O fato de ter desejado sonhar com a vó e sonhar com ela de verdade são no fundo a mesma coisa, ou seja, a expressão da necessidade de conversar com a vó, ainda que em vida a gente não tivesse esse tipo de conversa que só temos com os mortos, entende? É esse o papel dos mortos, ouvir os vivos e permanecer em silêncio até que essas palavras se espiralem e dissolvam no ar feito fumaça de cigarro subindo devagar. Sonhei que sonhava com a vó e ela só fazia que sim ou que não com a cabeça, como num jogo de mistério no qual lançamos perguntas e precisamos de pistas para chegar até as respostas. Era isso que a vó fazia, indicava os caminhos através dos quais eu deveria ir, mas sem realmente se comprometer, de modo que aquele corredor escolhido era inteiramente meu e não dela, aquela porta que eu abria era a porta que eu havia apontado. Nesse sonho a vó não pe...

Conversa com a filha

Pai, você acha que eu tô parecendo um menino? A filha vestia bermuda e uma camisa de futebol do Brasil. Olhei.  Continuava uma menina, eu disse, apenas usava roupas que não costumava usar, como aquele short e a camisa que lhe demos durante a Copa e que agora, neste momento, por razões que ela não entendia, havia perdido o sentido, o ano 2014 enterrado num passado distante e depois dele também 2018. Notei algo, porém. Entendi que a filha me desafiava a dizer que sim, que ela parecia um menino. Não disse. Não pareço mesmo?, insistiu. Não, filha. Continua uma menina. Fiquei pensando nisso algum tempo. Escrevi um parágrafo, depois dois. A filha é vaidosa, gosta de se pintar, passar batom. Usa muito rosa, típico da idade, e espalha sombra nos olhos.   Enfeita-se inteira quando precisamos sair. Pede ajuda apenas com os cabelos, que eu mesmo gosto de pentear. Lembro quando compramos essa camisa. Uma cópia barata de camelô com o nome do Neymar e o...

O som da máquina

Dos sons da casa o que mais gosto é o da máquina de lavar. Seus movimentos programados, as luzes acesas de cada etapa de limpeza e finalmente esse marulho. A máquina é o objeto doméstico mais parecido com a concha do mar. Basta encostar o ouvido. Aliás, não é preciso. Agora mesmo estou no quarto a quatro paredes de distância e escuto a máquina produzir essa marcha lenta de uma tarde de sábado. Talvez pela alternância de vozes, ora o abafado da roupa enxaguando debaixo d’água, ora o som centrifugado, a máquina de lavar traz uma sensação de alívio.  Quem sabe segurança, não posso garantir. Sei que é bom ouvi-la, é como uma radiola na casa. Ou uma sessão de psiquiatria, vejam as roupas que entram sujas e saem limpas do aparato mecânico que é como uma caixa dentro da qual empurramos as camisas e roupas de baixo e também toalhas de mesa e calças muito marcadas do uso frequente e das coisas que fazemos durante a semana. Uma operária diligente, a máquina.  ...

Nem todo homem

Nem todo homem responde que nem todo homem é um lixo, mas quase todo homem que diz que nem todo homem é um lixo é de fato um lixo, o que nem seria uma rima, tampouco uma solução. Nenhum homem deveria fazer uso frequente de uma expressão genérica segundo a qual nem todo homem comporta-se como sabemos que é a postura regular de qualquer homem, mas todo homem, ao menos uma vez na vida, já se defendeu de alguma crítica dizendo que, veja bem, “nem todo homem” isso ou aquilo. A verdade é que a gente sabe que todo homem, sim, eu, você e aquele outro muito desconstruído, mantém um padrão de atitude moral e eventualmente sexual que faz jus ao predicado ao qual é comumente associado: o lixo. Alguns são recicláveis, outros são radioativos e um terceiro grupo é totalmente inservível, ainda que a mulher ou o homem insista em empregá-lo para qualquer coisa. No geral, porém, todo homem, incluindo-se no saco nem todo homem, costuma frequentar um desses três espectros de lixeira pelo menos ...

Uma história sobre essa história

Li O apanhador no campo de centeio  antes dos 20 anos, depois aos 26 e finalmente aos 30 e poucos. Agora, volto ao livro perto dos 40. É uma história e tanto, que muda a cada nova chegada, mas preserva uma vitalidade incrível.   J. D. Salinger escreveu outros livros depois disso. Alguns publicados, outros mantidos em segredo até hoje e cuja divulgação o filho, herdeiro do espólio, decidiu começar a ceder. Mas é a história de Holden Caulfield que desperta fascínio. Tentar entendê-la é uma coisa engraçada e prazerosa, porque é como se quiséssemos compreender os motivos pelos quais gostamos de uma pessoa e desgostamos de outra. Há razões, claro, mas nenhuma facilmente identificável. E cada leitor ou leitora acaba descobrindo as suas, em épocas e momentos diferentes da vida. Holden é irritante como qualquer adolescente, mas sua voz carrega essa franqueza cristalina difícil de encontrar. É despida de artifícios. Presumo que seja a voz do próprio Salinger falando ali e...

Democracia em vertigem e a vertigem da crítica

Oi, ( nome da pessoa ). Tudo bem?  Primeiro, grato pela leitura dos artigos . Sobre o filme da Petra e sua fala a respeito de minha resenha, tenho algumas considerações. De partida, você diz: “Petra é acusada de falar para um 'círculo de convertidos”. Eu não acuso Petra de nada.  Eu apresento divergências quanto a forma e conteúdo, e, até onde sei, divergir ainda não é crime. Resumo minha crítica num ponto: “Como documentário, ‘Democracia em vertigem’ é pouco nuançado e tendendo a um esforço explícito de busca de cumplicidade de quem o veja”. Pouco nuançado porque passa ao largo do efetivo papel que cada personagem desempenhou no processo de desgaste e queda de Dilma, inclusive o próprio PT, que sai muito bem na fita, já que suas manobras para sabotar a agenda dilmista na Câmara não são pontos sequer de nota de rodapé.  E “tendendo a uma cumplicidade” da audiência porque fala a quem já se convenceu de que o afastamento da presidente foi resultado de uma ar...

Conversa com o tradutor

Converso com o tradutor, que me fala sobre a verdade. As coisas que dizemos ou não dizemos.  Quero perguntar por onde anda a verdade na arte, como buscá-la, de que modo encontrá-la, mas aí já escapo do objetivo da entrevista, o lançamento de um livro clássico que agora ganha uma nova leitura. O tradutor então cita uma autora. Diz que ela entendia essa verdade sobre a qual estamos falando. Mas não entendo. Agora mesmo, por exemplo: se escrevo um punhado de frases, há verdade no que digo? Presumo que sim. Estamos falando da mesma verdade, quero insistir no assunto mas a conversa já se encerrou porque dispúnhamos de pouco tempo. Por horas e horas eu continuaria ali, desajeitado e sem entender que diabos de língua era aquela que eu costumava falar. O tradutor talvez não entenda que essa verdade, uma verdade específica, é o bem mais precioso de quem se atreve a escrever. Nem todos a encontram. Depurá-la pode levar uma vida.