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Masculinos

É bom que os homens estejam conversando sobre masculinidades. Há de fato muito a ser dito, coisas que fomos empurrando pra debaixo do tapete nesses quase 40 anos de vida (meu caso) nos quais aprendemos (eu aprendi) a disfarçar certas coisas (a chorar, por exemplo) e encará-las como vergonha porque admiti-las era como colocar um alvo nas costas na hora do recreio (que eu evitava). A gente tinha medo (eu tinha) de parecer fraco como de fato era, mas uma hora passei ao outro lado, ou seja, entendi que coragem e brutalismo podiam estar a meu favor. E então decidi que essa virilidade, antes contida, viria a calhar no dia a dia. Eu tinha 14 anos e havia acabado de chegar ao bairro novo, onde mais uma vez eu andava escondido com medo ora dos caras mais fortes e mais velhos, ora de assaltantes. Aí apareceu esse sujeito com quem até então eu só tinha trocado duas palavras. Tão sério quanto podia, ele disse: se você continuar assim, será massacrado no bairro, “todos vão cagar” (perdão pe...

Três instantâneos de carnaval

1.  Uma garota rente ao palco sacode o corpo vestido de Cleópatra, está sozinha e para apenas de vez em quando, saca o celular da bolsa e canta, dirige-se à tela como se a outra pessoa, declama versos a plenos pulmões de uma música que fala de amor de carnaval, desencontros etc., uma temática clássica no vaivém passional de qualquer festa, sobretudo esta, ainda mais agora, o último fim de semana do pré, no ar uma certa urgência quase impositiva, mas ela não faz nada além de cantar e dobrar-se sobre si mesma, os movimentos lentos como se acionados remotamente por outra pessoa, ela habitando esse corpo enquanto a garota real está em casa e fantasia com hipóteses de felicidade. 2.  A seu lado uma mulher mais velha, talvez 60 anos, salta ritmadamente nos dois pés quando a banda manda essa canção de um grupo de lambada muito antigo, quem sabe se lembre de quando ainda tinha a idade que tenho agora e num baile como aquele dançou exatamente como hoje, mas com mais energia, de ...

Um parágrafo

Eu me encolho de frio, a cerveja muito gelada, a banda como um desses grupos animando festa escolar, por todo lado gladiadores de telenovela ruim e odaliscas de desfile militar, aqui e ali uma “laranja” a pedir os votos de felicidade a alguém que não conhece, também um guarda de trânsito, os fetiches de sempre, portanto uma mulher com chicote, um homem com espada, uma nuvem de arco-íris, logo uma roda que se alarga e depois recolhe, as fantasias encharcadas, então dois índios passam e acenam pedindo duas caipirinhas e o músico anuncia que é a última da noite antes de se despedir apresentando a banda, e cada integrante se empenha nesse gesto final, solando na bateria ou no baixo ou na guitarra e fazendo sinais positivos de cabeça aos gritinhos da plateia que implora finalmente por mais uma depois que já não há tempo para nada, afinal estamos nesse teatro e chove muito desde as sete horas da noite, quando ainda mourejava no trabalho escrevendo sobre política sem qualquer gosto por tudo a...

Aquela água toda

Agora já serenou, mas apenas uma hora e meia atrás desci para fumar depois de ter desligado todos os aparelhos eletrônicos de casa e em seguida percorri o corredor devagar, com medo de escorregar e dar com a bunda no chão molhado. Eletros, TV, computador, videogame, que ficava emitindo uns bipes intermitentes que logo interpretei como um alerta mais brando para algo com que eu deveria me preocupar caso a situação se mantivesse naqueles patamares de risco. Achei melhor confiar nesse instinto previdente que raramente aciono mas cuja eficácia costumo respeitar sempre que ele faz essas aparições bissextas na minha vida. Chovia. E como chovia. Chovia muito, a ponto de eu me convencer de que ir até a bica da esquina, que jorrava numa cascata volumosa, formando um Niágara na calçada, seria uma boa ideia numa manhã de quinta-feira na qual eu provavelmente não teria outra coisa melhor pra fazer além de ouvir uma gravação de 25 minutos e escrever um artigo sobre a reforma da Previdência...

A experiência

Levei dois caldos depois de meia hora decidindo se entraria no mar ou se continuaria estirado na areia ouvindo música e tomando sol, como qualquer adulto faz ao constatar que a maré está naqueles dias tensos de pré-ressaca. Pra piorar: sob efeito da lua cheia, fenômeno conhecido por desorganizar hormônios, desarmonizar o zodíaco e assanhar as palhas do coqueiro existencial que todos nós cultivamos nesse frágil jardinzinho instalado no coração (que imagem terrivelmente sertanejo-universitária, meus leitores, mas estes são tempos difíceis nos quais o modão* é a expressão máxima de toda dor e sofrimento amorosos). No primeiro caldo, um golpe inesperado, saí rolando onda abaixo e acima, feito uma mala solta no bagageiro de um carro que cruza o sertão cearense numa estrada carroçável. O segundo, menos violento, me levou ao chão com carinho, quase como se se desculpasse de aplicar uma queda logo após ter sido derrubado pela onda anterior. Explico: para esse eu tive condiçõe...

De amor e desamor

Talvez mais que o amor, o desamor. Histórias cuja leitura conduz a essa montanha-russa de sentimentos na esteira da qual resta uma paisagem de ruína, corpos danificados e vidas fraturadas. Uma lista breve de obras destinadas desde sempre aos “desnamorados”, aos desgarrados, aos desamparados e avulsos, seres cujos laços frouxos se fazem e refazem constantemente. Mas não se enganem: amor e desamor andam sempre em par, enovelados pelo mesmo barbante que ata os destinos das personagens destes romances.  É um equívoco supor que se possa amar sem desamar e vice-versa.   Laços , de Domenico Starnone Divórcio , de Ricardo Lísias O amor de uma boa mulher , de Alice Munro Um copo de cólera , de Raduan Nassar Os enamoramentos , de Javier Marías   Um amor incômodo , de Elena Ferrante Formas de voltar para casa , de Alejandro Zambra   Desesperados , de Paula Fox A única história , de Julian Barnes Nossas noites , de Kent Ha...

Vai desculpando qualquer coisa

Está aí uma frase que sempre me intrigou – “Vai desculpando qualquer coisa”. Minha tia costuma falar quando lhe faço uma visita, ao fim da qual, depois de comer bolo e tomar café, sapeca com um misto de vergonha e orgulho: desculpa qualquer coisa, meu filho. Mas desculpar o quê? O café ou o bolo? Ou será que a tia se refere a alguma nódoa familiar que ainda desconheço, um crime muito grave até hoje mantido em segredo por todos e do qual eu devesse saber algo, mas continuo ignorante? Não sei. Cacoete linguístico, o “desculpa qualquer coisa” tem alcance maior, porém, a ponto de resumir a vida doméstica de qualquer família cearense: ao acioná-lo, é como se uma pessoa se confessasse e seus pecados como anfitrião, reais ou imaginários, estivessem expurgados. É, ao mesmo tempo, um pedido de desculpas por tudo e por nada, presente e futuro, que retroage aos últimos fatos, mas também avança no tempo e abarca a série de coisas que ainda podem acontecer – daí o “vai desculpa...