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Disparate de sábado à noite

Um preâmbulo: de repente incerto, ainda tossindo muito, uma dor no peito. Tudo isso junto produz uma intranquilidade moderada que vai passar daqui a pouco, mas, enquanto não passa, continua a batucar de leve no corpo. Uma advertência: "disposto apesar do cansaço" é algo que eu diria agora se realmente a disposição superasse o cansaço, o que talvez se prove verdade apenas dentro de algumas horas, quando as duas forças se enfrentarem cara a cara no meio do salão de festa. Um protesto vão: venta bastante para um dia como hoje. Fecho as portas, cerro as janelas.   Uma platitude: já é setembro. É quase susto. Um pavor de que o ano se apresse a terminar. Peço educadamente que se detenha ainda um bocado antes de sair nessa carreira toda no rumo da esquina. O retrato: a paisagem da BR 116. Focos de incêndio aqui e ali, nuvens azuis de fumaça cobrindo a pista, o canteiro central dominado por lixo, animais pastando à margem das vias, homens protegendo-se do sol em fiapo...

Excesso

Hoje procurei descanso depois de 15 dias intensos trabalhando exclusivamente numa mesma palavra, redigindo frases que se pareciam – fulano disse, sicrano retrucou e por aí vai - e variando o vocabulário apenas o necessário, de modo que me sentia exaurido a ponto de começar e desistir e precisar recomeçar, tudo isso num único parágrafo. Pensei: é o caso de estar à toa uns bons minutos considerando unicamente esse nada essencial ao qual voltamos vez ou outra quando precisamos encarar certas verdades. Então foi melhor suspender as tarefas da noite desta quarta-feira – muitas, infinitas -, todas fundamentalmente jornalísticas e portanto cheias de uma certeza que às vezes falha, mas que sempre precisamos escamotear. Foi melhor parar um pouco e estar assim no meio da estrada como se à mercê de qualquer coisa.  Um vento mais forte, uma cabra vadia, um jagunço sedento ou uma visagem que de repente convide a entrar no mato e seguir moitas afora em procura sabe-se deus do q...

Ainda o bonsai

O bonsai está morto, e nada se salva.  É melhor enterrá-lo, mas suas raízes permanecem firmes no pequeno vaso vermelho que trouxe da praça e instalei ao lado de uma estante de livros. Ontem mesmo testei a saúde da planta: chacoalhei o galho, a ver se parecia amolecido como as folhas já murchas sugeriam, mas, pra minha surpresa, o tronco diminuto se revelou muito rígido e em certa medida resistente. Feito um morto que permanecesse de pé muito tempo depois de morto. Não tiro disso qualquer lição. É apenas uma planta fincada num jarro qualquer decorando uma casa como tantas outras, nem mais nem menos pobre ou infeliz do que as demais.  Embora a gente (eu) costume carregar nas tintas e fazer parecer que a tonalidade de uma luz que entra pela janela é mais intensa do que de fato é.

Um jeito desleixado de fazer as coisas

Às vezes é preciso ir bem mais fundo pra encontrar qualquer coisa, sobretudo se estivermos escrevendo num bom ritmo, empenhando nisso certo tempo mas não todo o tempo do mundo, entendem? Então é preciso ir fundo, mas não vagarosa e pacientemente, mas fundo de um jeito mais rápido, o que talvez não seja uma boa maneira de ir a qualquer lugar. Estou falando em tese, mas poderia exemplificar com a ideia de um conto sobre o qual venho pensando e cuja história já esbocei inúmeras vezes. Todavia falta sempre algo, uma coisa determinante, um estopim ou gatilho ou outro mecanismo que faça disparar essa massa de energia sem nome acumulada durante tanto tempo. O sentimento necessário ao começo de uma história que exigirá certa dose de disposição para andar um pouco e entrar nesse vão escuro ou excessivamente iluminado que está no fim de toda grande busca. A Grande Busca. E, uma vez nele, remexer um bocado as coisas, tirar os móveis do lugar e reparar no arranjo de tudo, d...

Primeiro escrever, depois ler

Sim, as caixas. Apenas ontem terminei de desembalar o último pacote de livros e comecei a organizar as coisas na estante depois de uma temporada com a vida bagunçada e essas páginas todas espalhadas pelo chão de casa. É a primeira vez que falo sobre isso.  Talvez não devesse dar tanta importância ao movimento pendular de corpos e ao rearranjo que os sentimentos acabam provocando, mas o fato é que estou aqui disposto a abordar um assunto cuja complexidade de repente me pareceu possível de ser vencida de algum modo ainda impreciso. E então passei a desembrulhar tudo e a retirar cada pequeno objeto contido nas caixas, como se apenas agora me devolvessem algo precioso sem o qual eu não poderia voltar a andar sem tropeçar. Caixas guardadas por quase todo o ano, lacradas com fita isolante e esquecidas num canto da sala. Caixas grandes e pequenas, quase todas estampando alguma marca de xampu ou de laticínio, mas que não guardavam nem produtos de beleza nem iogurtes. ...

História sobre as caixas

Era meia-noite quando comecei. Tinha acabado de terminar um filme sobre a vida de DFW. Sentei na cadeira disposto a escrever o que quer que fosse, mas a verdade é que passei ainda um tempo olhando a tela escura do computador enquanto revirava os últimos dez anos durante os quais parte da obra de David Foster Wallace fez parte da minha vida. É um filme bonito, concluído de um modo magistralmente lírico, apesar da tristeza que é vê-lo dançar antes de tudo que ainda aconteceria na década seguinte. Tinha planejado falar mais um pouco sobre o filme em si, pontos fracos e fortes, os cacoetes do ator, jovem estrela do cinema etc. Mas talvez não valha a pena. Convencido de que não, levantei e fui até a estante. Retirei livros do lugar à procura das três obras de DFW traduzidas para o português. Não encontrei.  Quem sabe estivessem nas caixas de papelão ainda lacradas que trouxe do outro apartamento de volta pra casa depois de me separar da minha esposa e reatar...

Salvar o bonsai

Era um sábado, talvez sexta. Não lembro. Passeei desinteressado entre vasos de plantas, apontando aqui e ali para uma que chamasse a atenção. Uma rosa, um lírio, uma orquídea.   Saí do quiosque na Praça das Flores com um bonsai na mão. Sempre quis um, talvez pela repercussão tardia e nunca totalmente afastada da lembrança de  Karatê Kid , mas também pela leitura de Bonsai , de Alejandro Zambra. Em casa deixei o vaso em cima de um móvel destinado originalmente a uma radiola e aos discos que ainda não temos. Houve protesto. Insisti. Vistosa e de um verde brilhoso, a copa miniaturizada curva-se à esquerda, como um topete que se derramasse à força do vento. Um caule único e tortuoso. Hoje sei que o trouxe comigo porque me pareceu uma proeza que uma planta se dobrasse tanto sem quebrar, mantendo-se em equilíbrio.  De uns tempos pra cá, no entanto, o bonsai deu pra murchar e ganhar uma tonalidade cinza. Pensei na fuligem, mudei de lugar. Continuou. Depois...