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História sobre as caixas

Era meia-noite quando comecei.

Tinha acabado de terminar um filme sobre a vida de DFW.

Sentei na cadeira disposto a escrever o que quer que fosse, mas a verdade é que passei ainda um tempo olhando a tela escura do computador enquanto revirava os últimos dez anos durante os quais parte da obra de David Foster Wallace fez parte da minha vida.

É um filme bonito, concluído de um modo magistralmente lírico, apesar da tristeza que é vê-lo dançar antes de tudo que ainda aconteceria na década seguinte.

Tinha planejado falar mais um pouco sobre o filme em si, pontos fracos e fortes, os cacoetes do ator, jovem estrela do cinema etc.

Mas talvez não valha a pena.

Convencido de que não, levantei e fui até a estante. Retirei livros do lugar à procura das três obras de DFW traduzidas para o português. Não encontrei. 

Quem sabe estivessem nas caixas de papelão ainda lacradas que trouxe do outro apartamento de volta pra casa depois de me separar da minha esposa e reatar na tentativa de que agora as coisas sejam melhores.

Caixas que foram e voltaram do mesmo jeito.

Então desci as escadas saltando os degraus até chegar ao térreo e de lá caminhei ao depósito onde mantenho pilhas de revistas, coleções para as quais sei que o destino será o lixo.

Os livros de David Foster não estavam lá.

Voltei preocupado, agora galgando cada degrau com o corpo pesado e considerando os lugares onde poderia ter esquecido esses livros ou a quem teria emprestado. 

Não pensei em ninguém.

Até que achei. Estavam no armário do quarto. Exatamente ali. Bem atrás de mim. Espiando de dentro do escuro de um armário embutido mais ou menos como meu chefe faz quando quer se certificar de que estou pelo menos na metade de uma reportagem pela qual ele está aguardando.

Levei-os até a mesa e os coloquei ao meu lado enquanto clicava no ícone do processador de texto, que abriu um novo documento.

Pensei: agora posso começar a falar sobre o filme, mas a história que precisava contar já não era sobre o filme. 

Era sobre as caixas. 

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