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Domingo

Domingo, e o céu escuro como se desabando aos poucos, ameaça que nunca se concretiza. Carregado, anuncia chuva que não chega, banho que não vem, sereno que alivie o cansaço, mas não o de agora. Abro um arquivo. Dentro de um texto, um novo texto que não sei qual é. Escrevo porque preciso abismar - e digo abismo literalmente, cavar com as próprias mãos em solo rude, estragá-las nesse esforço e nisso criar outras mãos que saibam outro ofício mediante outra gramática. Estar diante do que seja agora a curva e na curva um encontro.    Exercício de paciente espera. Leio de acaso, e de acaso pesco o trecho: “Pelos campos fora/ Caminhava sempre/ Como se buscasse/ Uma presença ausente”. É Sophia de Mello. Levo horas olhando seu rosto na capa do livro, uns olhos fundos, a boca entreaberta, os cabelos curtos à altura dos ombros, um vestido bonito de quem se preparasse sempre a ir a passeio ou festa no fim da tarde. Então penso nisso. Na ideia de passeio, tarde e disposição ao e...

Notas de um a três

Nota 1 Uma experiência na cozinha. Acender o fogo, preparar a comida e ligar a música. Depois ouvir a música enquanto espera a comida. O tempo do cozimento, que não é o tempo da música, transcorrendo no compasso de outro tempo. Nenhum o tempo de que precisa para que passe. Nota 2 Andou de bicicleta e esqueceu a bicicleta. Pendurou-a no gancho do estacionamento do trabalho dois dias atrás e não voltou para buscá-la. Esquecimento. Todos os dias, ao sair do jornal, pergunta ao porteiro se a bicicleta ainda está lá. É minha, diz. Amanhã voltarei para vir pegar. Vai até o gancho. Ela ainda está lá. Depois segue a pé, novo modo de se deslocar. Andar. Estar à toa na calçada mastigando pensamentos. Nota 3 Fim de tarde. O dia consumido como num sonho, as horas sem conexão, e no entanto, uns pontos e vírgulas depois, amontoa frases e costura orações como quem entrega ao freguês um trabalho que não lhe toma nem tempo nem energia. Apura os ouvidos. Sons de pássaros, carros que voam,...

Entre outras distrações

Passear o olhar, deter-se na quina do objeto, deixar-se estar no final da tarde encostado a um muro e nesse muro enxergar a planta que cresce na fresta. Fotografar a árvore que abre os tijolos sem educação, como a dizer que segue a depender unicamente do próprio gosto. Pegar a luz pela mão, uma camada oblíqua de amarelo-queimado, essa cor de lápis de pintar que desaprendemos depois a chamar pelo nome que tem. Depois acender e apagar o cigarro. O chão coalhado de goiabas amarelas que caíram do pé ainda pela manhã. Lembrar que, ainda ontem, um homem foi apanhando uma a uma, mas que hoje já estão ali aos montes. Amarelo ainda a cor favorita. 

Não olhe pra trás

Abro o livro ao acaso como se cortasse um baralho e de lá puxasse uma carta cujo naipe já soubesse de antemão. Então encontro essa história. Uma garota que perdeu a memória depois que seu namorado foi embora. Na verdade, ela tem amnésia após bater a cabeça contra o chão enquanto era suspensa pelas colegas num ensaio qualquer da faculdade. Ou da turma de teatro. O fato é que a menina esquece tudo no lapso de um ano. Apaga rostos e sensações, catástrofes e gostos, marcas e datas. Esquece quem é, do que gosta, quem são seus pais e por quem se apaixonara. Mesmo um evento como o 11 de Setembro desaparece totalmente de suas lembranças.  Num instante, ela sofria por causa do término da relação. No outro, está vazia de tudo.  Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia esta...

A resposta de L

Antes de que nos falássemos, porém, houve esse momento em que L meio bêbada quis fazer acreditar que estava muito triste por causa de algo que não queria dizer. Mas L não se entristece de fato, é uma mulher muito forte e segura que ri e macera toda a matéria com as mãos e os pés. Eu lhe disse isso, usei a imagem certo de acharia bonita. Afinal concordamos em que os pés e as mãos, as extremidades do corpo, desempenham papel fundamental na felicidade. Sofremos sempre e nos alegramos, e toda alegria e agonia começam pelos pés, começam pelas mãos. Então lembramos brevemente de um episódio e depois de outro nos quais confirmávamos a valência dessa verdade segundo a qual há nas pontas de cada um modo de decifrar o futuro, nas mãos carregamos mais certezas que dúvidas, nos pés conduzimos mais acasos que rotas. Não surpreende que leiam as palmas à procura de significados, que dedilhem as linhas e nessas linhas adivinhem sentidos que permanecem ocultos. Palmas e plantas, ela respo...

L no passeio

Tornei a falar com L, agora noutro contexto, ambos já curados e exaustos de tudo que foi carne e sangue. Ela ainda toda ânsia de mudança, um corpo que vai em frente e procura. E se não acha não se detém no que não tem importância. Para e escreve que deseja tudo diferente. Uma vida? Um ano? Um livro? Ela não responde, apenas que precisa dessas coordenadas que não levem ao mesmo lugar, que está na rua enquanto digita e não sabe se conhece essas pessoas, se já as viu em sonho, se são elas mesmas inventadas, criações suas postas em existência por capricho. Se de algum modo ela se descolou e agora flutua sobre as coisas. Penso na ênfase da palavra, o diferente caído ao final como um pingente muito pesado que faz o pescoço curvar-se e nessa curva perder talvez o que possa ter de certeza. No diferente uma porção de fé e força, tanta energia gasta na procura. Afinal, diferente do quê? E para quem? Pergunto se ainda tem certezas, e parece que desconverso, que procuro desvios no...

Da chuva sei apenas o cheiro

De pé no centro do quarto olho o fluxo de carros na avenida. Ordenado, unidirecional, reto. Tenho inveja das coisas que já tão cedo vão num caminho certo. Ainda não são oito da manhã. Dormi mal, as vias respiratórias obstruídas, uma névoa encobrindo a vista como se andasse em meio à chuva, o colchão que maltrata as costas. O mundo de novo como três lanças atravessando o corpo. Lembro que fez sol no São José. Crestada toda esperança. Não choverá. Verdade que choveu na madrugada e a água entrou pela janela, molhando roupas e trapos atados em nó? É o que dizem. Não estava acordado e perdi. Da chuva guardei o cheiro tão somente, a sensação de que algo passou enquanto me distraía. Corrente de ar fresco que também é chuva. Fico com essa lembrança. O que não é, mas é como se fosse. O que não basta a ver se bastasse. Deitado ainda, escrevia na cabeça o que escreveria quando levantasse finalmente. Mas, agora que escrevo, tudo é de outro modo, nada como quando olhava essa fresta...