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Postagens

Comer é uma oração*

Comida é ritual, tanto no preparo quanto na alimentação em si, passando por modos de servir e estar à mesa, sozinho ou acompanhado, homem ou mulher. Experimentem, olhem pros lados discretamente. Imaginem um casal à espera, se se sentam um de frente pro outro ou lado a lado. Se conversam ou cada um batuca na tela de celular, se comem alegremente ou se são personagens de um desses quadros de Edward Hopper no qual o humano é irrevogavelmente sozinho. Comer  é o contrário de solidão, sobretudo no Brasil, especialmente se falamos de um  comer  familiar, de mesa grande e farta, típico do nordeste de tradição senhorial, quando evocamos o gesto doméstico da mãe ou da avó ou do pai e do avô ocupando-se numa cozinha repleta de suas gentes, reunidas em festa. Mas  comer  também é estar só, festejar a si anonimamente, como numa oração que sopramos em rumorejos vagarosos, num movimento de coisas que só dizemos a nós mesmos quando em conversa particular. E tudo se e...

O vestido*

O vestido é uma peça vulnerável, disse uma amiga, melhor colocar um short, uma calça, hoje quero beber, quero encontrá-lo no fim da linha, da noite, naquela mesa marcada e pedir uma cerveja, melhor duas, depois uma caipirinha, antes uns pastéis, que não bebo de barriga vazia. O vestido, de fato, pensando bem, considerados os prós e também os contras, subtraídos os riscos, levando-se em conta as possibilidades, medidas as circunstâncias, tendo em vista o propósito, conforme a designação espiritual de cada um, sob pena de parecer ridiculamente insistente, o vestido, reparem, é uma peça essencialmente vulnerável, o vento, a mão, a farpa solta na cadeira, o homem tarado, a criança, a amiga. É bem possível que uma infinidade muito grande – redundante - de pessoas conseguisse erguê-lo facilmente, mas nem todos dançariam ao arrepio. * Postagem original em novembro de 2012. 

Ainda uma carta*

A gente se põe a escrever achando que chegará ao final do mesmo jeito, conhecendo o caminho e parando o tempo que achar que pode. Mas nunca é assim. O domínio se esfarinha. Queria escrever hoje o que não tivesse fim. Como em 1996, quando terminei um namoro e precisei andar de ônibus pela cidade. Ou em 2009, quando o casamento acabou e dei voltas pela rua do bairro que eu já conhecia tão bem. Aprendi a fumar andando em círculos. Ajudou, mas não funcionou. Isso foi em abril. De lá pra cá, choveu tanto que nem sei mais se é o tempo lá fora ou aqui dentro que deu uma piorada. Sei que escurece. Uma carta de despedida é também uma carta de chegada. É uma dessas ironias que a gente cria a pretexto de entabular conversa com gente estranha. É como um papo no elevador. Escrever para dizer que vai embora. Ou escrever pra falar que fica ainda. Ficar ou ir. Tudo em arte é uma separação, do corpo, da família, da vida. Li que García Márquez passou um ano e seis meses fora de casa para c...

Fio que se liga ao mar

Eu tinha escrito uma dessas coisas tristes que a gente escreve quando o mundo gira em falso e deixamos cair objetos que escolhemos carregar, pratos, louças, garfos, livros e caixas contendo fotografias, que se espalham pela rua e depois precisamos juntar com a ajuda de estranhos.  E montar em seguida o quebra-cabeças que somos nós mesmos, estendendo um fio de Ariadne para sair do labirinto e driblar o minotauro, chegando ao final sem entender direito como foi parar ali.   Mas aí reli e pensei: quero escrever uma coisa alegre. Dei meia-volta e refiz todo o caminho no mesmo passo, uma trilha de retorno desenhada por alguém diferente do que foi, não apenas nesse sentido de Heráclito, de que uma mesma pessoa não toma banho duas vezes no mesmo rio – porque o rio já é outro e ela também. A pessoa que regressa, como num dos livros do Alejandro Zambra, é sempre uma terceira, tenha passado o tempo que for, seja porque ela é uma, seja porque a casa é outra. São como uma ca...

Campo de presença

Revolver os materiais.  A cada vez, a certeza de que retemos bem pouco. Muito escapa. Nada é garantido. E, no entanto, precisamos  de afundar e cavar.  Mexer com cada coisa, ter nas mãos as formas e texturas mais várias. Experimentar derrota e vitória. E depois revolver tudo em garimpo de afeto. Uma pescaria, não para fisgar, mas para fincar.  Cada linha lançada a tentativa de desenhar no ar um arco que seja também círculo, que seja a geometria de um sólido e  não de fluido, que se conforme ao recipiente. Revolver memória viva e morta. Passado e presente, memória e afeto. Esquecer para lembrar, lembrar de esquecer. E, nesse exercício, recorda da  aula na qual falou imprecisamente sobre campo de presença, um conceito semiótico escapadiço, como quase tudo numa disciplina assentada em fantasmagorias.  Embora não entendesse, apesar de lhe faltarem as fundações mais consistentes, sentia que ali, a sua frente, havia uma grandeza afetiva e...

Arquivo

Uma pane no computador colocou tudo a perder, fora todo o escrito, duas páginas de lamentações atiradas diretamente a algum canto escuro de uma máquina cuja finalidade é gravar e manter a salvo o que pensamos e dizemos. Não esta, esta cuidou em dissolver, um engenho feito para extraviar e não reter. Uma sensibilidade para soluções drásticas, exatamente como essas que evitamos na vida porque temos a certeza de que o tempo se encarrega do pior. Ela, no entanto, perdeu. Como se tivesse consciência do risco e da dor. Tratou de resolver o problema de fazer desaparecer oito mil caracteres num passe de mágica. Numa hora, palavras emaranhadas a sentimentos, um nó insolúvel que ganha forma à medida que é dito. Uma forma sem forma. E, no instante seguinte, a tela azul, números e letras se alternando sob o regime nervoso de alguma ordem caótica, uma cor espectral que remete aos primórdios da informática abrindo-se como um portal diante dos olhos. No centro da tela, o reflexo do ...

Façam faxina

Amigos, quando a barra pesar, façam faxina. Limpem o banheiro, munam-se de vassoura, rodo e pano e mãos à obra. Um bom esfregão é melhor que poesia. Um Bombril é mais eficiente que terapia. Esfreguem tudo com afinco, dedicando-se de corpo e alma a cada centímetro quadrado de sujeira que encontrarem no chão da sala ou em qualquer outra parte da casa. Concentrem-se sobretudo nos cantinhos, que são os locais onde o inservível se acumula, gerando pequenos monturos domésticos que depois se transformam em Megazords, fagocitando todo o resto.  Removam, embalem e joguem fora. Não é caso de deixar nada brilhando, nada disso. Nenhuma superfície fica 100% limpa, nenhum tampo de mesa reflete com perfeita acuidade a imagem da gente. Há sempre uma marca de dedo em tudo que fazemos, sempre uma mancha de oleosidade que fica, um rastro do que somos mesmo quando empenhados em limpar. Dizem que 90% do lixo em casa consiste em pele morta, células que depois viram poeira. Então, d...