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Façam faxina

Amigos, quando a barra pesar, façam faxina. Limpem o banheiro, munam-se de vassoura, rodo e pano e mãos à obra. Um bom esfregão é melhor que poesia. Um Bombril é mais eficiente que terapia. Esfreguem tudo com afinco, dedicando-se de corpo e alma a cada centímetro quadrado de sujeira que encontrarem no chão da sala ou em qualquer outra parte da casa. Concentrem-se sobretudo nos cantinhos, que são os locais onde o inservível se acumula, gerando pequenos monturos domésticos que depois se transformam em Megazords, fagocitando todo o resto.  Removam, embalem e joguem fora. Não é caso de deixar nada brilhando, nada disso. Nenhuma superfície fica 100% limpa, nenhum tampo de mesa reflete com perfeita acuidade a imagem da gente. Há sempre uma marca de dedo em tudo que fazemos, sempre uma mancha de oleosidade que fica, um rastro do que somos mesmo quando empenhados em limpar. Dizem que 90% do lixo em casa consiste em pele morta, células que depois viram poeira. Então, d...

Antes de dormir, depois do fim do mundo

Ultimamente vinha pensando na maneira mais correta de narrar, isto é, de transformar tudo em palavra e a palavra em memória, reviver o tempo apenas em sua dimensão estética, cortar fora o que fosse afeto em demasia, que pesasse além do que podia suportar.  Um fracasso, claro, de modo que sequer tentou levar adiante. Mais um projeto natimorto. À velha pergunta sobre o limite da escrita, respondia com um muxoxo, um disfarce para a questão de fundo mais grave, que era: tudo posto aqui, em palavra, afeta o outro tanto quanto a si mesmo, tudo vai e volta, cai e ergue-se. E foi com essa bobajada que consumiu a tarde, as horas difíceis da tarde. Havia escrito cartas, reescrito o já dito, numa peleja sem fim. Agoniou-se com o silêncio, o vexame que era surpreender-se em sobressalto, tão frágil e descarnado, tão impotente e solitário. Desavisado, encontrava o espelho e se surpreendia  desfigurado, o rosto contorcido. Não mais sorriso. Careta. ão era o mesmo. Não era ele. Era ...

Violência

E pensou então que todo acidente tinha essa dimensão da palavra, que afetava um modo de dizer, de se referir, que tudo acontecia e imediatamente ganhava essa camada de linguagem. Talvez enquanto acontecesse. Agora mesmo, por exemplo, via-se como um desses acidentados numa maca no corredor à espera de cuidados, um tratamento que fosse, qualquer ampola de analgésico, mas o fenômeno que o abatera não tinha nome. A dor era a dor sem nome, a agonia sequer podia chamar-se porque lhe faltava o básico: a letra que pacifica o dito, o dito que confere carnalidade a uma coisa vazia. L sabia disso tanto quanto eu, sabia que o mero fato de dizer acidente a algo que parecia mais um ataque carregava um mundo de sentidos e disputas. Sabia que não se tratava de amor ou casualidade, era um ato de violência. O jeito bruto de chamar o fenômeno por si. Como quando se cai. O jeito de lamber as feridas, expô-las ao tempo para que fechem, olhar o corpo e chamar à conversa cada pedaço em avaria, ...

O acidente de L

L me conta que um homem se atirou na frente do seu carro enquanto deixava o restaurante. Era um rapaz e tinha uma cerveja na mão, lembra, talvez estivesse bêbado e o fato se limitasse a isso, um jovem embrigado atacando uma mulher na rua.  E dizer que se limitava, como se se tratasse de ninharia, já era em si uma violência.  Mas é possível que também não estivesse bêbado. É possível que desesperasse. Um desnorteio que houvesse tentado controlar, talvez L o fizesse lembrar de um rosto, quem sabe se L não fosse esse elo que o rapaz evitasse sempre que se deparava com a matéria própria da memória, que queima e fere a pele mais que fogo, mais que asfalto quente. Eu respondia e L prontamente rejeitava qualquer resposta, não estava satisfeita com nada, esperava que eu a consolasse e dissesse que se tratava obviamente de um assédio, um ataque covarde cometido por homens em grupo a uma mulher desgarrada. E pensei que L tinha razão, fora alvo de uma emboscada, sim, era tão ...

A música de K

Peço ajuda a K, digo que preciso de uma palavra, qualquer uma. Explico que é um mote para algo que não sei ainda. Ela me envia uma música. “Qualquer palavra serve.” Escuto. Embora não esteja com ânimo pra ouvir, deixo rolar enquanto escrevo e leio. Paro um pouco. Murmúrios, umas frases soltas, coisas desconexas. No meio da confusão sonora, distingo “amor”. A música termina, ainda não tenho ideia do que fazer, mas a expressão “qualquer palavra serve” acaba ficando. Penso em João Silvério Trevisan e no seu novo livro, “Pai, Pai”, no qual revolve o magma das relações familiares. Revira a própria vida, expõe-se, dá-se a ler sem pudores, sente que foi além ao falar tanto mas já é tarde. Talvez tenha se arrependido. É um sentimento com o qual uma hora ou outra temos de lidar. Imagino o sofrimento, mas Trevisan fala também sobre o processo curativo da escrita. A capacidade de reviver o trauma, a dor, percorrê-los novamente, agora com certo distanciamento, mas não totalmente ...

Uma conversa com H (parte iii)

Mas existir não bastava, e tudo que havia dito até ali sofria de um mesmo mal: eram palavras excessivamente alegóricas, tudo metáfora, nada que dissesse do sentimento o que pudesse haver de raiz, nenhum mineral, nenhum amor como a pedra que afunda, apenas perfumaria e esse jogo impetuoso de expressões com duplo ou triplo sentido, palavras empilhadas que ruíam ao menor tremor de mãos. H escutava e escutava. Depois franziu a testa, olhou pra longe e chorou. Talvez até um choro falso, pensei com alguma crueldade. Apenas a lágrima que é mais uma lembrança da glândula, uma reação do músculo, o corpo que se rebela contra o automatismo. Não o ataque, mas a simulação, não o golpe, mas o prenúncio do golpe e da dor que se seguiria. Então H chorava para que não precisasse chorar depois, numa economia de gesto e afeto que explicava muita coisa. E mesmo que não concordasse, ainda que calasse sobre a imprecisão de tudo que falava e a insuficiência das coisas escritas, mesmo as que aparent...

Uma conversa com H (parte ii)

E de repente revi tudo. E nesse movimento também revi H e todo o processo, do início até o fim. Era importante apanhar as coisas pelo nome, ele mesmo acrescentou, não exatamente compreendê-las, mas saber que estavam ali e que tinham esse rosto, não eram como ideias soltas, não como as coisas sem contorno, umas fantasmagorias. Eram ideias com pé e cabeça e tronco, cheiro e boca, cabelo, costas, dedos e unhas, quadris e ventre. O fato de que as ideias de H tivessem ventre animava ainda mais a conversa, foi só nesse momento que senti: talvez ele chegue aonde quer, a esse ponto indefinido ainda, mas que existe, talvez consiga delimitar e recortar e se aproximar e tocar esse ponto crucial. Os sentimentos não são como animais fantásticos, disse mais uma vez, e era tão comum em tudo que falava a referência a animais, ao que não tem arbítrio, a tudo que é apenas força e ímpeto. Lembrou da expressão usada por Dante quando chega ao inferno: selva selvagem. Era ali que H desejava vi...