Pular para o conteúdo principal

Postagens

Teatro

A maioria das pessoas subestima o poder do deslocamento, mínimo que seja. Recordo um episódio de infância. Quando minha mãe alterava a configuração dos móveis, colocando o sofá no lugar onde antes estava o armário e a mesa agora contra a parede, a TV noutra parte da estante, a estante de costas para onde costumava ficar, uma cortina fora do lugar, a mesa de centro num ângulo inusitado etc – quando fazia isso, algo mágico acontecia. De repente, a casa parecia outra, e nós, uma família diferente da que éramos. Vivíamos uma euforia sem explicação durante uma ou duas semanas, após as quais os novos objetos começavam a se encaixar na rotina da casa. E a casa, que era outra, passava a ser nossa mais uma vez. Não sei se minha mãe tinha noção disso. O que a levava a operar essa alquimia doméstica? Que algoritmo governava o seu senso estético? São perguntas que nunca tenho tempo de fazer porque passamos a maior parte das horas discutindo sobre como cada coisa chegou aonde chegou, e rindo ...

O meio

Olhar pra longe de si.  Olhar pra fora. Não é como se fosse uma regra. É um exercício saudável recomendado por dez entre dez escritores mas cuja prática usualmente ignoramos. Olhar pra fora não equivale a enxergar-se sob o ponto de vista de outra pessoa. Olhar pra fora é ver o que não podemos sendo nós mesmos. É escrever o que talvez nos assuste. Escrever depois das 22 horas é como estar numa festa depois das 4 horas da manhã e sentir de repente que a hora certa de ir embora havia sido cerca de três horas atrás, exatamente entre a vontade de discar um número específico no celular e a de virar mais uma cerveja no gargalo. Isso não é um adágio popular. Reli parte do que escrevi entre os 20 e os 23 anos. Não é algo que recomendaria para uma noite de sábado. Mas até mesmo arrancar um dente deve ter lá os seus momentos divertidos, de genuíno prazer e felicidade que justifiquem toda essa dor e falta de sentido. Mas talvez não esse.   Quando fiz minha conta no Twitter, ...

Franzen x Almada

Selva Almada é incrível. Jonathan Franzen também. Recomendo ambos. Franzen reiterativo, pra variar. Aquela impressão de que não confia de todo no leitor, precisa dizer sempre mais - dizer enfaticamente. Precisa esquadrinhar. Daí que as páginas se avolumam e o livro se agiganta. Tem 600, mas podia ter menos caso se privasse de dizer sempre tudo em detalhes e explicar cada motivação ou fundamentar cada ação ou deixar bastante claro que o personagem X age assim porque foi abusado na infância ou abandonado pelo pai ou pela mãe ou por ambos. Acho que Franzen podia relaxar um pouco e deixar mais espaços em branco com que o leitor possa se divertir, não o tipo de divertimento que é se deixar conduzir sempre pela mão habilidosa do autor e o seu senso de humor sui generis. Falo do divertimento que Selva Almada proporciona, o de permitir que o leitor imagine cada coisa ou cada cena e a vida antes e depois de tudo que acontece. Franzen mata essa curiosidade. Ele se encarrega de ...

Três números

E talvez assim jamais passasse de quatro, cinco, nada além do proto, sequer ensaio, que requer certa noção de direção, uma suspeita de caminho, por leve que seja. Sequer isso. Dois, quando muito, forçando a barra, o ideal seria um mesmo e pronto, está acabada a obra, finalizada, basta que se lhe dê o tempo necessário para que... sei lá. Aconteça. Toda obra precisa de tempo pra acontecer. Talvez a dele exija todo o tempo do mundo, sendo a própria obra o transcurso desse tempo, apenas isso, o tempo escorrendo e a obra se desdobrando como uma toalha na mesa ou as cartas de um baralho. No máximo três, condescendeu, três e se não fala mais nisso, três é um bom número afinal de contas. De três não passaremos, e no três estacionamos por cerca de sete anos ou menos ou mais, mas dentro do três, convém dizer, havia uma infinidade de números. Cabia o mundo.

O breve, o incerto, o precário

Agora que saiu fico pensando se o melhor não seriam os tamanhos diminutos, esses espaços exíguos, as mínimas máximas, os pequenos intervalos nos quais nem percebemos quando algo acontece em vez do estirão de tempo-espaço à nossa frente à espera de preenchimento. Preencher é cansativo, aborrecido, enquanto o miúdo é uma espécie de dádiva. Talvez preguiça, talvez predisposição do tipo prefiro não fazê-lo. Talvez o pequeno arranjo seja o modo natural de estar no mundo a partir de agora. Não o prolongado de agonia continuada, o fixo, o duradouro, mas o precário, o incerto, o breve. As coisas menores não melhor que as maiores, apenas as que estão aqui e faz todo o sentido olhar e tomar entre as mãos e depois perceber que o caminho bem que pode ser por aqui, talvez seja, acho que será. 

De frente pro mar

Não saber por onde começar é um bom começo apenas quando a gente encara isso com humor. Estou perdido, podemos dizer, e essa perdição não significa abismo nem fim da linha, tampouco desespero. É mais como uma mudança. Estou aqui, finalmente, e de agora em diante é um pouco como quando a gente coloca os pés pela primeira vez numa sala de aula e se surpreende tentando adivinhar a historinha por trás de cada rosto. E cada rosto é uma interrogação até o momento em que o conhecemos. Como aquele homem parado na frente das pedras na Praia de Iracema. Segurava um conjunto de fotos que ia retirando de um pacote, um desses envelopes pardos que usamos para guardar xerox de boletins e certidões de nascimento que depois esquecemos em gavetas. Estava sozinho, era dia e fazia esse sol brabo que é quase uma segunda natureza. Vestia calça jeans e camisa de mangas. Tinha recebido o pacote de outro homem, que o entregou e foi embora num trote tranquilo de quem cumpriu uma missão e agora volta pra c...

Um avião

Ultimamente tenho pensado sobre isso de dançar agarrado ou então sobre o preço de estacionamentos ou a formação das chuvas no nordeste. Vivemos o quinto ano seguido de seca. O que isso quer dizer? O que isso deveria querer dizer? A gente mora na capital. Na capital não falta água. A gente convive lateralmente com a falta d’água. Essa aridez é apenas vestígio. Todo o restante segue à margem da falta, que é dissimulada. É a dupla falta: do bem e do símbolo que a designa. É um achatamento da experiência e da linguagem, que se contenta com a perfumaria, enquanto a experiência recalca ou disfarça ou transforma a falta num adorno, que continua lá, potencialmente danoso.   Penso numa palavra avulsa como seca, qualquer uma, solta na frase, uma palavra-conceito que mais anuncie que explique, que mais confunda que aclare. Mas, isto são exercícios, ensaios de ensaios de quem não pretende sair do lugar, ainda que pareça longe e avançando no tempo.   Explicações estão for...