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Postagens

"Estação Atocha", de Ben Lerner

Eu poderia ter grifado muitas passagens de “Estação Atocha” (Rádio Londres) na tentativa tortuosa de, pelo acúmulo de trechos interessantes, talvez inesquecíveis, convencer de que vale a pena ler o romance. Mas quase nunca grifo um livro, exceto quando me sinto particularmente deslumbrado. E o romance de estreia de Ben Lerner é deslumbrante do início ao fim. Logo, teria de marcá-lo inteiro. Uma única reta que percorreria as pouco mais de 200 páginas. Trabalho ocioso. Um bolsista de literatura perambula pela Espanha em 2004. Enquanto fuma maconha misturada a haxixe e mente compulsivamente, vai tentando desatar os nós que elabora, seja na poesia, seja nos relacionamentos. Basicamente, é isso. Mas sobre o que é o livro? Arrisco: é sobre a batalha entre o autêntico e o falso. Sobre o avatar que criamos para acomodar as expectativas e ideias postiças que temos sobre nós mesmos e as escolhas que tomamos para sustentar esse edifício de aparências. E a resultante disso. ...

Faz de conta

Lembro de ter sentido que tudo era a mesma história repetida várias vezes. Como no desenho animado em que quatro adolescentes se perdem num mundo alternativo do qual não conseguem mais voltar. Ou não querem mais, dá no mesmo. Não querer é não poder e vice-versa. Prestes a entrar no portal, algo dá errado sempre, e a empreitada de retorno é adiada mais uma vez. Acho que eles inventam uma razão para não querer. Sabotam a volta pra casa. Porque voltar pra casa não teria mais graça se voltassem. Melhor sonhar com a volta pra casa do que voltar propriamente e encontrar a mesma casa que deixaram pra trás quando escorregaram da montanha-russa direto para outro lugar. E ainda ficam culpando o velhote, que teria um acordo com o diabo monochifre etc. Acho difícil, mas não colocaria minha mão no fogo por ele. O velhote tem um quê de Noesferatu versão pocket. Desaparece atrás de pedras e se comunica por enigmas quando a situação exige clareza e sensatez. Quase sempre se pode adiv...

Agosto

Ainda sobre a saída de Ivo Gomes do governo Camilo. Escrevi outro dia que a possibilidade de que os Ferreira Gomes estejam planejando se descolar do petismo no Ceará é mais plausível do que considerar a atitude intempestiva do caçula do grupo como mero capricho. A baixa pode não ser nada, mas pode ser alguma coisa. Tratemos de possibilidades, então. O PT desidrata no país inteiro. PMDB e PDT, para citar apenas dois partidos da base do governo Dilma, estão de malas prontas para deixar o Planalto. PDT, legenda para onde os irmãos pretendem se mudar, tem votado contra o governo desde o início do ano. Difícil crer que o grupo escolheria uma sigla com passaporte comprado para a oposição sem levar em conta a repercussão que isso teria na política cearense. A não ser que o próprio grupo tenha planos de deixar a base de Dilma... Outra questão: restando ainda três anos e meio para uma nova eleição, seria realmente inteligente romper com o governo do Estado? Refaço a pergun...

Somos todos o quê?

Vale a pena ler isto. O Sérgio Rodrigues linca um texto do Bressane sobre a mesma polêmica da literatura feminina – não confundir com feminista.  A Simone Campos também abordou o assunto num artigo publicado no "Zero Hora".   A celeuma nasceu por causa desta entrevista e foi alimentada em seguida no Facebook e Twitter, com socos e pontapés de parte a parte.   Nem concordo com o final algo edificante do texto do Sérgio. Diz ele: ao cabo de tudo, “somos todos anões albinos estrábicos nascidos em Arapiraca” e, sendo assim, é melhor falarmos de humanos para humanos. A literatura, mesmo com toda a liberdade, não me permite assumir o lugar do outro, embora não seja disso que trate o debate. Ocupar o lugar do outro é uma impossibilidade em qualquer arte, o que não impede de tentar alcançar ao máximo esse espaço - não pra ocupá-lo, mas pra experimentar outra perspectiva, seja com que propósito for.  Logo, pra mim, o “somos todos”, em qualquer c...

Mezzo aliado, mezzo adversário

Ué, mas Eduardo Cunha já não era adversário de Dilma? Em parte. Formalmente, era aliado. Ao menos é isso que a presença do PMDB no governo permite concluir. São muitos ministérios ocupados por gente do partido, e o próprio Cunha tem lá seus indicados na máquina. Pessoalmente, no entanto, o deputado nunca foi aliado, mas um feroz inimigo, comandando derrotas sucessivas ao governo. Foram seis meses infernizando a vida do Planalto. Mas há diferença entre a posição dúbia, ora governista, ora adversária, e a autodeclarada oposição. Paradoxalmente, apesar das dificuldades que virão, como as duas CPIs prometidas, talvez seja mais fácil lidar com o presidente da Câmara francamente opositor. Cunha está acuado, sozinho e, até onde é possível entender da nota oficial do partido, sem o apoio imediato do PMDB. Em seis meses à frente da Câmara, nunca pareceu tão fragilizado.  O congresso do PMDB é apenas em setembro. Dentro de dois meses, portanto. Até lá, avança a investigação...

Cunha rompe com Dilma

Peço licença pra falar de política. A crer na reportagem de “Época”, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) oficializa nesta sexta-feira o que já vinha praticando desde o início do ano: adotará de vez o discurso de oposição ao governo Dilma. Que o deputado se comportava como adversário do governo, nisso não há qualquer novidade. A notícia é que, a partir de agora, o jogo será às claras, com o presidente da Câmara assumindo-se opositor.  Ou seja, de um lado, a ameaça de impeachment da presidente. Do outro, a possibilidade de pedido de afastamento de Cunha da presidência da Câmara com base nas denúncias do MPF. O caldo tende a engrossar ainda mais.  Caso se confirme a ruptura com Dilma, o deputado terá dificuldade para arrastar consigo o PMDB. Afinal, uma coisa é ele mesmo, investigado pela Lava Jato, postar-se do lado de lá do balcão, abraçando o mantra de que a melhor defesa é o ataque. Outra bem diferente é convencer a penca de ministros do partido a entregar os cargos. É ...

Cheiro

D e algum modo, o cheiro sintetiza tudo: suor, fluidos corporais, cama, ambiente, hálito de bebida, perfume, xampu. É uma súmula do trajeto percorrido até o gozo derradeiro. Tudo isso o cheiro carrega.    A cerveja chega. O garçom abre a garrafa sem mirar. Venta em abundância. Há um gosto de sal na conversa. O tampo da mesa pegajoso gruda-se ao olor de cada palavra.  A nossa volta, cada grupo de pessoas parece iluminado com uma santidade própria, prestes a se desfazer tão logo parasse de soprar e o vozerio fosse morrendo naturalmente. Era uma tarde incrível.