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Capítulo I: peixes, zumbis, infrapoderes

Há dias ou talvez semanas venho pensando na mesma história, que é uma história bastante simples, nela nada explode nem é abduzido, nenhuma motosserra separa a cabeça do restante do corpo de ninguém, não há zumbis, não por falta de tentativa, na verdade é uma história para crianças e acho que os zumbis ainda não foram aceitos entre o Lobo Mau, o Barba Azul e outros personagens infantis, talvez fique pra próxima, algo como Zumbis pra crianças – manual de sobrevivência.  O que uma criança tem que fazer caso encontre um zumbi à toa andando pelas ruas? Fugir, correr, se fingir de morta, lutar, chamar a mãe? Conto depois, muito depois. Antes disso, quero contar a história que venho tentando contar há duas semanas. É uma história simples e começa como um enunciado de questão de terceira série. Há dez peixes no aquário do Joaquim, um menino não tão esperto quanto gostaria de ser. Por exemplo, quando tenta mover objetos com a força do pensamento, falha miseravelmente, e se se...

Corrida

Diferentemente do que a maioria pensa, a corrida espacial não é uma competição para descobrir quem encontra primeiro a água no solo marciano ou detecta sinais de vida inteligente fora da zona habitável ou ainda prova que a energia escura é realmente escura e os buracos negros, realmente negros. A corrida espacial tampouco tem a ver com as soluções tecnológicas para os propulsores a jato ou as lentes de sondas enviadas às luas de Júpiter. A corrida espacial é o deslocamento entre os pontos A e B de uma massa qualquer e tudo de bom e de ruim que acontece pelo caminho, o que vemos, o que não vemos, as pessoas que encontramos ou deixamos de encontrar, as decisões, os medos, a paisagem, o tempo, se choveu, se nevou, se alguém parou e perguntou para que lado ficava a saída e depois coçou a ponta do queixo.  A corrida espacial eventualmente inclui também um ponto C, um D, um G. A corrida espacial é uma gincana e uma gangorra e, como gincana e gangorra, às vezes per...

Chão

Texto publicado no caderno de aniversário do jornal O Povo .  Pelo chão é que se conhece de verdade, pelo chão é que me conheci. Pelo chão encontrava minhoca para peixes, caneta, cédula graúda, despojos de brinquedos. Pelo chão caía e lacerava joelho e cotovelo, magoava feridas já supuradas, rastejava em brincadeiras de guerra. Pelo chão engordava sonho de beijar na boca. Pelo chão, meu e da metrópole, fui cinzelando um corpo e sopesando a justeza dos sentimentos.    Pelo chão se conhecem pessoas, humores e doenças da cidade. O chão sabe ao que trazemos e ao que escondemos. O chão não se alheia; o vento tampouco o enverga. É mais largo que oceanos, mais denso que a luz. Porque homens e mulheres esfarelam num punhado de memórias quando o próprio corpo degenera, às vezes o chão é o amor que resta. Estão enganados todos os que respondem: a pele. O maior órgão do corpo é o chão. É a lonjura atravessada num dia ou numa noite. É morada e experiência. É a...

Inventário

O inventário das coisas ausentes , novo romance da Carola Saavedra, que livro. Não porque embaralha os registros ficcionais e biográficos, ou autobiográficos, ou ficcionais sutis e ficcionais escancarados, cada vez mais me confundo quanto aos limites da autenticidade, os limites da ficção, os limites. É bom porque sugere não apenas que inventamos histórias a partir do que não existe, mas inventamos as histórias que existiram, inventamos continuamente, quer os fatos tenham existido, quer não. Não cessamos de inventar. Inventamos e roubamos. Inventamos uma narrativa para cada passado, inventamos um passado diferente para cada etapa da vida, inventamos mesmo quando acreditamos não inventar.  É bom porque os registros, inventados e reais, podem se encontrar em algum momento do desenvolvimento das histórias, mas podem também passar ao largo uns dos outros, sem jamais deixarem de integrar a mesma história, sem jamais confluírem harmonicamente para um final. É bo...

Naquele ano eu perdi o meu sapato

Já que tenho me repetido, t alvez tenha dito isso outras vezes aqui. Pior, cada vez que me repito, sinto que digo algo novo. Cada novidade é, assim, uma repetição de algo vivido entre o ano em que eu nasci e o de agora. Portanto, só posso acreditar que o que vem pela frente é sempre uma variação do que navega na mesma direção, mas em sentido contrário. Eu não sei se fui claro, mas em 2009 eu tinha razões para acreditar que, se as coisas não estavam muito fáceis pra ninguém, e realmente não estavam, pra mim elas pareciam bem piores, o que talvez, vendo tudo de longe e um pouco mais velho, não passe disto: um borrão na vista.   Talvez já tenha dito isso também. Nesse ano, o de 2009, coisas estranhas aconteceram, e uma delas foi que meu mp3 emperrou na mesma música. Foi o ano de uma música só. O ano em que eu pensei pela primeira vez: e seu eu pudesse morar no intervalo de um desses versos?   Peço desculpas se agora estou aqui falando como alguém que viu a bes...

Outra coisa

O resultado é que até hoje tenho dificuldade de nomear o que se passa quando, em pleno horário comercial, dou de cara com a suspensão da rotina. O susto de, às 14h27min, encontrar uma brecha no tempo, um respiro no maquinário das horas.  Como se acordássemos de tarde depois de uma soneca, certos de que o relógio havia girado as 12 horas e fosse outro dia, mas ainda é quarta-feira. Ainda é o mesmo dia. E então caminhássemos pela casa estranhando u ma cadeira, um programa na televisão, a voz do pai na cozinha.   Sempre me interessei por tudo que responde ao trabalho com uma lentidão própria. A identificação é automática. Acolho o deslocado e o enviesado como talvez uma mãe abraçasse o filho a quem faltasse norte, um filho cuja vida, sempre na corda bamba, ameaçasse desmoronar. Olhando pela janela da memória, vejo na distração da sala de aula o marco de um regime de extravio, de deambulação à luz do dia, de escapismo.  De lá para cá, à  mercê das tarefas copiadas ...

Suspensão

Lembro quando ainda criança, no meio da aula me perdia e só voltava a custo, às vezes porque a professora chamava pelo nome, às vezes porque tocava o sino do recreio e todas as crianças saíam em galope desenfreado. Muito tempo depois, já adulto e ainda desligado, passaria a me referir a esses momentos como suspensão. Porque eram de fato isso: um hiato no meio da rotina, um pequeno abismo gestado sob os pés por força não da imaginação voluntária. Os abismos que criava eram de outra natureza. E não me perguntem qual, porque ainda hoje tenho dificuldades para compreender o que se passa quando, no meio da tarde ou da manhã, esteja ocupado ou à toa, o fluxo do tempo de repente soa antinatural, e cada objeto da casa ou do quarto assume feições assustadoramente fantásticas. É quando o hábito se desfigura, corroído por qualquer falta de sentido.  No meio da conversa, uma boca se mexe. O que diz? O que quereria dizer se não estivesse dizendo o que diz? O que talvez dissesse não fos...