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Outra coisa

O resultado é que até hoje tenho dificuldade de nomear o que se passa quando, em pleno horário comercial, dou de cara com a suspensão da rotina. O susto de, às 14h27min, encontrar uma brecha no tempo, um respiro no maquinário das horas. Como se acordássemos de tarde depois de uma soneca, certos de que o relógio havia girado as 12 horas e fosse outro dia, mas ainda é quarta-feira. Ainda é o mesmo dia. E então caminhássemos pela casa estranhando uma cadeira, um programa na televisão, a voz do pai na cozinha. 

Sempre me interessei por tudo que responde ao trabalho com uma lentidão própria. A identificação é automática. Acolho o deslocado e o enviesado como talvez uma mãe abraçasse o filho a quem faltasse norte, um filho cuja vida, sempre na corda bamba, ameaçasse desmoronar. Olhando pela janela da memória, vejo na distração da sala de aula o marco de um regime de extravio, de deambulação à luz do dia, de escapismo. De lá para cá, à mercê das tarefas copiadas no caderno de 12 matérias, vaguei nas quatro linhas da quadra de futebol, fiz gols, beijei as namoradas da escola, venci todos os valentões em lutas sangrentas. Em suma, fui habitante do sonho. Ia descobrindo outro tempo. O tempo meu.  

Coincidência ou não, por esses dias descobri também que há grupos de pessoas preconizando a redução da velocidade em todas as esferas da vida, da alimentação ao ritmo de trabalho, das atividades físicas à educação. Desde que não vire norma, como tudo hoje em dia, estou de acordo. Sou da opinião de que a velocidade baixa, quando bem combinada aos arranques e à constância, é garantia de gozo prolongado. Façam o teste. 

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Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

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