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Fumaça do bom direito

Todos os dias, um número cada vez maior de pessoas se despede das redes sociais. Normalmente, fazem-no com algum estardalhaço, anunciando a saída aos quatro ventos, imbuindo esse gesto derradeiro de uma grandiloquência bíblica que não deixa de ser engraçada. É possível imaginar esses desertores na estação, um tanto perdidos, acenando para uma esposa deixada para trás, um filho que não se verá nos próximos cinco anos, um marido largado sozinho por força das circunstâncias. O drama é real, palpável. Romper com Twitter e Facebook se tornou tão oneroso quanto abrir mão de coisas essenciais no dia a dia. É uma doença? Não creio, embora aceite os argumentos de que os sintomas de privação dessas ferramentas apontam para um quadro clínico seguramente preocupante.    Vamos aceitar o fato de que, não sendo doença grave, que requer cuidados especiais, correspondem a uma moléstia de menor proporção. Ainda assim, moléstia. Não uma papeira ou conjuntivite, mas uma verminose, uma f...

Republicando: "Barba ensopada de sangue"

Não resta dúvida de que o burburinho midiático que se seguiu – e até antecedeu – ao lançamento do romance   Barba ensopada de sangue   acabou criando uma necessidade urgente de referendá-lo desde já como potencial candidato a história do ano – quiçá de uma geração. Era uma tentação que se justificava também pela alta expectativa que nasce a cada novo trabalho do paulistano Daniel Galera, autor de   Cachalote   e   Mãos de cavalo . Assentada a poeira da novidade, porém, às vozes que saudaram o quarto romance do escritor com pouco mais que entusiasmo e histeria, misturaram-se outras, talvez mais preocupadas em entender como todo o virtuosismo estilístico do autor não foi suficiente para impedir que   Barba ensopada   não se confirmasse como a grande aposta literária. O livro narra a história de um professor de educação física gaúcho que sai à procura do avô, morto em Garopaba, no litoral de Santa Catarina. Sem nome mencionado ao longo dos acont...

Amor/rumor

Não é sempre que o texto começa sem finalidade, vadio no espaço entre as palavras, ganhando corpo aos bocados, fundando-se a cada frase, inaugurando sentidos à prestação. Às vezes acontece de partir duma ideia pré-definida e só depois se desencaminhar, extraviando-se do pressuposto, desdizendo o juízo, desgovernado e aprumado ao mesmo tempo. Finge que vai, mas fica; que fica, mas vai. Noutras, sucede que, mesmo forçando a mão para que tome uma direção, termina por desaguar em outra. Já vi textos que principiam por afirmar X e arrematam com Y, embaraçando todas as letras do alfabeto no percurso. Finge que finge, e fica por isso mesmo. E há casos em que a aparente uniformidade da progressão narrativa é apenas um alçapão abaixo do qual se desenrola o enredo vicinal, intercalado, atravessado por alamedas, becos e córregos. Uma história sem fingimento. 

Planetas escorregando

Há obsessões que acompanham uma vida inteira; outras que vêm e voltam, sem arredar pé, intermitentes, acenando numa esquina para logo desaparecer e, em seguida, ressurgir num canto de muro, numa praça, durante a aula, numa sobra de refeição, exibindo um sorriso difícil de compreender, seja porque o conhecemos de muito tempo, seja porque tem sempre algo de renovado mistério. Marte não é desse tipo. A obsessão pelo planeta situa-se a meio passo do diletantismo, a meio da ciência amadora, a meio da falta do que fazer. E se me perguntam por que tenho investido tanto tempo vasculhando bibliografias e fuçando arquivos na internet, respondo, sem traço de vergonha: não sei. Jamais estive tão interessado em planetas como agora, jamais escavei tanta informação avulsa nem fiz pesquisas randômicas a partir de quase nada, motivado apenas por curiosidade, colecionando novidades e esquecendo-as no instante seguinte. É menos que um hábito, mais que interesse passageiro. Esferas rodopiando...

Os sonhos da mãe

Passo agora a contar o sonho da mãe, uma geminiana de 54 anos, separada, três filhos, dois homens e uma mulher com idades variando entre 33 e 25, dois dos quais casados duas vezes, um deles convencido de que frequentemente basta espiar um pouco a mãe ou o pai em ação na cozinha para entender como tudo foi terminar assim. A mãe vem sonhando com jacarés com uma insistência que me faz pensar em muita coisa. Levado ao pé da letra, o sonho, no qual a mãe luta com o animal, pode não querer dizer nada. À luz dos incontáveis fenômenos sobre os quais não temos tanta certeza, porém, significa muito. Por exemplo, que a mãe talvez precise enfrentar uma criatura agressiva, cheia de dentes, que submerge nas águas mais turvas de um rio caudaloso tão logo algum perigo a ameace. A mãe saberá se defender? Há um agravante. A mãe sonha lutando com jacarés não em seu habitat natural, a água. As lutas são travadas na cama, o centro nervoso de um palácio doméstico. Ali, debaixo dos lençóis, ...

Pôr do sol em Marte

E o que dizer do pôr do sol em Marte, o planeta vermelho, o último da região telúrica, o mais próximo da cordilheira de resíduos estelares? Marte, refúgio sideral, Pasárgada dos desajustados, montículo de nada, anexo sem serventia, grande balcão de negociantes fantasmas. Marte, uma Terra que não deu certo, sem aprumo, sem eira nem beira, sem ministério nem mistério. Marte, a locomotiva solitária de sonhos interrompidos.  O maior cânion, o maior vulcão, a maior varanda desabitada do sistema solar. A grande promessa não cumprida do turismo intereslelar. O único deus da guerra a nunca ter esmagado sequer uma formiga. Vermelho, distante, confuso, ambíguo, atmosfera irrespirável, solo pedregoso, vegetação inexistente. Ainda assim, uma ida a Marte valeria qualquer pôr do sol terráqueo, uma passada por Marte e daria todas as tarefas por encerradas, uma escapada a Marte e quedaria satisfeito ao final do dia, cansado da gravidade, da preocupação com neutrinos, da conta de intern...

A orquestra

Olha, embora pareça o contrário, às vezes é muito difícil dizer alguma coisa diferente da usual empregando as mesmas palavras ou palavras da mesma família, variando apenas o ritmo da frase e a pontuação, recorrendo a meia dúzia de adjetivos e outra meia dúzia de advérbios, sempre vistos com desconfiança. É difícil por muitas razões, mas principalmente porque a capacidade de soar diferente exige um sem número de atributos e habilidades, tais como talento e disposição, além de técnica e sorte, e tudo isso tem que caminhar junto como numa orquestra, e muitas vezes até tentamos fazer com que a música soe harmoniosa como se tocada por uma orquestra afinada, mesmo quando o resultado lembra uma algaravia sonora. Olha, por causa dessas e de outras dificuldades, tantas que sequer posso enumerar, frequentemente abrimos mão da ideia odiosa de orquestra e logo agradecemos a todos os deuses por isso. É quando resolvemos tocar qualquer música, em qualquer tom, de qualquer jeito, com qualqu...