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A maior diversão

O filme começou de repente. Tirei a mão do meio das pernas. Ela deu um sorriso, que devolvi um pouco sem graça, um pouco à vontade. Ela pediu: continua enquanto não começa mesmo, enquanto não acontece nada, enquanto é escuro. Eu cochichei: tem um senhor sentado atrás da gente, um senhor gordo, um senhor respeitável. Ela virou discretamente em direção ao homem gordo e depois disse: não tem problema, ninguém vai acreditar, ninguém se preocupa mais com nada. Eu rebati: claro que tem, há sempre alguém que foge à regra, esse senhor gordo parece bastante preocupado com tudo. Ela franziu a testa: estamos perdendo tempo, estamos perdendo energia, estamos perdendo gozo. Agora foi minha vez de dar risada: estamos ganhando o jogo, o homem parece ter dormido, imagino que um senhor respeitável preocupado com tantas coisas sempre durma um pouco antes do filme. Ela guiou minha mão novamente até o meio das pernas e segredou baixinho qualquer segredo abafado pelo rugido do leão da MGM. Pedi...

Qualquer lugar estranho

Da ponte viu que um novo espigão tinha sido erguido bem ali, perto dos navios encalhados e da carcaça ferruginosa do Mara Hope, perto da área onde o governador pretende construir um aquário gigantesco para satisfazer desejos pessoais e oferecer aos de fora o melhor em termos de visitação guiada a uma vida marinha controlada com rigor e medida por instrumentos afinadíssimos trazidos de longe a um custo jamais informado, perto ainda de uma comunidade pobre, perto também de uma dupla de policiais, um deles mais bronzeado que o outro, ambos aparentemente familiarizados com a vizinhança, ambos possivelmente assustados com a vizinhança. Perguntou-se se o espigão era recente. Era? Parecia obra inacabada. Diferente da ponte velha, estragada pelas três supremas variáveis que concorrem para a degradação não apenas de superfícies, mas também de pessoas (tempo, uso e abandono), o espigão tinha essa natureza indisfarçável de novidade envelhecida a fórceps. Forçava a barra na condição po...

Se você quiser ver

1.   Dizem que a gente encontra sempre os livros que procura. Isso é apenas parcialmente verdadeiro. No mais das vezes, a gente sequer sabe o que procura, incluindo livros, até finalmente encontrar.  2.   Entre uma coisa e outra há tanta ciência inexata que é melhor colocar o assunto um pouco de lado e passar ao que está  de fato   ao alcance: o que não encontrar, para onde não olhar, quais distrações evitar. No fim das contas, tudo se equivale de alguma maneira, quer na complexidade, quer nas aparências, e escolher talvez seja tão difícil quanto não escolher. E carregar tão complicado quanto deixar pra trás. Isso também é apenas parcialmente verdadeiro.    3.   Encontrei Se você quiser ver uma baleia numa tarde de sábado de outubro. Não encontrei, fui encontrado. Estava distraído na livraria quando uma moça muito bonita me cutucou e disse: olha que lindo. Olhei, e era mesmo lindo. Depois da leitura, porém, concordamos imediatament...

Guarda-chuva

Uma última coisa: não vá pensando que estou querendo esticar ainda mais a conversa, que volto porque passo dos limites, que a insistência é uma dádiva, que, não faz tanto tempo assim, eu fui embora e acabei não indo além da esquina etc. Engula esse choro, eu diria se fosse uma mãe bem cruel e você uma criança a quem todos os amiguinhos tivessem deixado pra trás. É que preciso dizer, expressar, entende? Não basta formular, tenho que materializar a pergunta, recriá-la no tempo e no espaço, abri-la como um guarda-chuvas ainda que não esteja chovendo, me proteger dos golpes ainda que não caiam canivetes. Eu faço perguntas para me abrigar da chuva. Não é preocupação com as roupas, é comigo.   Vamos, não tenho tanto tempo. Passou do meu horário e a aula já começa, não quero perder. A prova oral é na semana que vem. Esse sorriso... quer dizer o quê? Não, é uma pergunta de verdade, não embute nada, não é capciosa. Não esconde outra intenção, não quero saber de nada além d...

Sobre a crueldade

Oi, como vai? Posso puxar uma cadeira? Posso contar uma história? É, isso, só pra quebrar o gelo. Acabo de ler sobre o lado cruel de animais considerados amáveis; fofos num sentido genérico.  Focas, filhotes de lontras. Pequenos animais para os quais olhamos e logo imaginamos cenas bonitas, aconchego, calor, temos vontade de abraçar, de beijar. Então suspiramos e sonhamos alto, “bem, seria maravilhoso se todos se adorassem como as lontras se adoram”.  Enfim, toda sorte de bons sentimentos. Pois bem. Esses animais considerados fofos e amáveis são na verdade muito cruéis, foi o que acabei de ler. E, por alguma razão, isso não me causou nenhuma surpresa. Claro, não apenas eles. Se há uma justiça no mundo é que a crueldade foi democraticamente distribuída. Quero dizer, não é estranho que os tipos mais inofensivos sejam capazes de estuprar filhotes de outras espécies até a morte e continuar chafurdando nos corpos ainda que já estejam caindo aos pedaços de tão ...

A outra mão

Vamos falar baixinho sobre o tempo conturbado, pode ser? O que acha de tanto barulho, consegue respirar e bater palmas ao mesmo tempo, tem certeza de que a próxima rua é a rua certa, o que fechar primeiro, os olhos ou a porta, qual o último pensamento antes de dormir, como reage ao silêncio? São perguntas pra checar a frequência do pulso e assim garantir que os resultados do teste sejam os mais fidedignos possível. Agora, por favor, vamos simular uma conversa normal sobre o pugilato das ideias feitas, a complexa engrenagem que alimenta a crueldade dos amigos, o grau aceitável da indiferença, a maneira menos torpe de julgar e condenar outra pessoa. Podemos começar? Não, ainda não? Enquanto não começamos, gostaria que virasse pra trás na cadeira. Está vendo aquela janela? Ela descortina uma paisagem urbana degradada. Está vendo a garagem? As pessoas na garagem? O que fazem as pessoas? Limpam, transportam objetos de um lugar para outro, ouvem música, eventualmente riem de al...

Xxxxx

“Uma tristeza crônica de origem difusa.” Eu quis rir quando li, mas esse era eu  quatro ou cinco anos atrás indo e vindo pelas ruas de uma cidade xadrez banhada por águas cuja balneabilidade varia conforme o número de descargas que a rede hoteleira dá.  Baita autodiagnóstico.   Escrevi isso num caderninho vagabundo de arame. Era 2009, tinha 29, primeiro casamento, sem filhos, trabalhava e estudava, sem dinheiro, sem videogame, sem rodo de pia. Um quase fodido que gastava as melhores horas da vida em cima dos livros, e isso era bom. Andava pouco e sozinho, e isso também era bom. Nessas poucas andanças, escutava três músicas em looping infinito, não lembro quais, mas era como se, ao ouvi-las, eu enxergasse o mundo de longe. Nesse mundo visto de longe, eu me flagrava voltando pra casa com uma expressão da qual agora eu só consigo gargalhar.  Essas três músicas me empurraram pra perto de tudo que eu queria e não tinha coragem, então acabava evitando p...