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E.B.E aporta no litoral

Começo agora um exercício.  Dizem os especialistas: domingo é de longe o melhor dia para realizar pequenos consertos nas zonas habitáveis da casa. Isso sem contar a programação televisiva, tão reveladora da vida inteligente quanto o ralo do banheiro é dos costumes de um inquilino. Esse exercício, uma fisioterapia sem a parte terapêutica, tem a finalidade de recuperar os movimentos naturais do corpo, soterrados por falta de prática, preguiça e uma crença excessiva na inesgotabilidade do tempo. Sua metodologia é a de sempre: tentativa e erro. Primeiro os dedos, esses miseráveis do hábito, anões da terra média. Apontam sempre o mesmo caminho. Cavam a rocha dura como ninguém. Escória dáctila. Agora é diferente. Um de cada vez, sem tanta pressa, vão navegar no contrafluxo das horas bem gastas. Estão obrigados a mostrar outras direções. Querem sempre alcançar, prender, beliscar, perfurar e deslizar, empurrar e massagear. Não se satisfazem com pouco. Às escondidas, rumin...

O extravagante locatário

Ainda sobre o mesmo e único tema, o abraço.  Num segundo impossível, desses que só existem por mero capricho de humor celeste, fui ao início do ano e voltei. Desconsiderando a possibilidade de que qualquer fato de grande repercussão possa acontecer até dezembro, o que não deixa de ser um convite aberto e cheio de esperança a que toda sorte de coisas estranhas ainda ocorram em dois meses, passei a limpo 2013.  O que descobri nesse ano em que o tomate vilanizou o índice da inflação, o Brasil goleou a Espanha e as ruas se transformaram no Grande Guichê da Revolução?  O óbvio: fui morador de mim mesmo. Inquilino de um imóvel cuja escritura me pertencia. O extravagante locatário do próprio corpo.  O que isso quer dizer exatamente, eu não sei. E presumo que ninguém jamais saiba direito onde e quando vai poder descansar a perna. Arrisco, porém, uma conclusão preliminar: ao tentar recuperar uma trajetória ou um objeto, restituindo-lhe cor e sombra, devolvendo-lh...

Abraço

Agora é minha vez de falar: estranho mesmo, se quer saber, é voltar no tempo, como tenho voltado com tanta frequência, e reencontrar tudo que foi dito e de lá não extrair uma vírgula de sinceridade. Nada. Um farelo de sentença honesta, uma porção miúda do que pensei seria a paisagem natural. Então descubro: não há paisagem natural. Cada volta é uma viagem diferente. Comparei fotografias, medi sorrisos, esquadrinhei abraços, cruzei as mesmas ruas, avaliei declarações de teor semelhante – acredite, nada é como antes. O clichê venceu. Acabo de retornar de uma dessas viagens estranhas em que temos a opção de descer do carro e caminhar horas a fio por uma cidade exclusivamente imaginada por nós. Sabe o que encontrei? O nada. Pra onde virava, dava com a cara na parede. O pior: eu gargalhava. Gargalhava na encruzilhada. Gargalhava nas esquinas. Gargalhava nos balcões dos bares que ainda guardavam marcas de cigarros.   Nessa cidade tão vazia deparei, no entanto, com alg...

Javalis não transpiram

Javalis não transpiram, foi o que ouvi quando a jornalista encarou o javali como se precisasse dizer algo realmente importante. Então soltou essa: javalis não transpiram.  Estava comendo, melhor, esperando comer. Pedira o de sempre, filé à parmegiana, o prato mais rápido do restaurante. A jornalista, melhor, a Glória Maria, vestida com roupas de repórter aventureiro em visita a algum país exótico, celebrava a diversidade da fauna desse país exótico etc. Foi aí que disse: javalis não transpiram.  Tive pena ao imaginar cada um dos poros daquele animal tão bonito a sua maneira. Cada orifício obstruído pelo arbítrio da natureza. Suando pra dentro. A temperatura do corpo à mercê de um mecanismo de compreensão ainda mais estranha que o nosso.    Javalis não transpiram, repetiu Glória Maria. Era como se dissesse: vejam como cada segundo de vida pode ser uma doce confusão entre o que queremos e o que podemos ter.  E t udo isso só fez aumentar a solidariedad...

Toda a água

Antes de sair de casa, tomou outra xícara de café. Apanhou uma caneta e prometeu guardar silêncio ao longo das próximas horas, fizesse chuva ou sol, morressem pandas ou não. Os pensamentos assim, empurrando-se uns aos outros, como refugiados a desembarcar de um navio à beira do naufrágio. Saiu. Voltou. Tinha esquecido o mp3, que pôs na mochila. Abriu a geladeira mais uma vez. A garrafa cheia, tudo guardado, faltavam cervejas, poucas frutas, nenhum chocolate, azeitonas vencidas, escassez de iogurte, hambúrguer congelado, uma panela destampada. A água sempre com esse gosto estranho, um sabor metálico, cheia de temperos. Considerou tomar outro banho, colocar outra roupa, embarcar noutro ônibus e descer noutro ponto. Devolveu o mp3 à mesa. Tampou a panela. Comeu uma azeitona. Gostou do sabor. Abriu a janela. Esperaria que a chuva molhasse tudo. 

Desencontros

Coincidentemente, revi Encontros e desencontros há dois dias. A obra é de outubro de 2003. Tem 10 anos, portanto. De lá para cá, o que ficou? Tudo. Principalmente a cena final. Nela, Bill Murray cochicha algo no ouvido de Scarlet Johansson. O quê? Ninguém sabe. O desfecho do filme de Sofia Coppola está para o cinema como o mistério de Caverna do Dragão para os desenhos animados. Um segredo de Fátima. Uma incógnita. Diferentemente de Caverna, porém, Encontros não é uma obra inconclusa. É aberta. Esconde essa lacuna maior, que pinica no juízo de quem assiste. Contrafeitos, vemos as letrinhas subirem e a tela escurecer. Acabou. Nenhuma cena extra. É aquela história e pronto. Cada um que a desenvolva do jeito que acreditar melhor. Tudo por causa daquele derradeiro fiapo de conversa. Uma despedida? Um novo encontro? Um convite? Uma promessa? Queremos saber. Suspeitamos. Não há maneira de ter certeza. Queremos ter. Queremos o seguro, o certo, o completo. O que temos é perigo...

Atualização importante

Tinha uma porção de coisinhas desimportantes pra falar. Um incômodo em relação a outra porção de coisinhas desimportantes que li e ouvi, principalmente que li, já que tenho escutado tão pouco e cada vez pior. Escuto pior por entender que já não faz tanta diferença, mas também por problemas de saúde. O que me leva a perguntar: é verdade que chegamos a esse estágio pré-larval em que cada um fala o que pensa e todo mundo entende o que quer?   No estado geral das coisas (importantes e desimportantes), insistir no que não tem importância pode ser, mais que um desvario, um ato de afirmação. E tudo seria perfeito se abraçar esse ato de afirmação não exigisse tanta energia, se não levasse ao quase esgotamento, se não terminasse por nos obrigar a gastar mais tempo explicando razões do que efetivamente gozando o processo.     Caga-regras (nota cômica: o corretor ortográfico sugeriu, indiretamente, “defeca-regras”) e otimista que sou, queria um decálogo. Isso ...