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Desencontros

Coincidentemente, revi Encontros e desencontros há dois dias. A obra é de outubro de 2003. Tem 10 anos, portanto. De lá para cá, o que ficou? Tudo. Principalmente a cena final. Nela, Bill Murray cochicha algo no ouvido de Scarlet Johansson. O quê? Ninguém sabe. O desfecho do filme de Sofia Coppola está para o cinema como o mistério de Caverna do Dragão para os desenhos animados. Um segredo de Fátima. Uma incógnita. Diferentemente de Caverna, porém, Encontros não é uma obra inconclusa. É aberta. Esconde essa lacuna maior, que pinica no juízo de quem assiste. Contrafeitos, vemos as letrinhas subirem e a tela escurecer. Acabou. Nenhuma cena extra. É aquela história e pronto. Cada um que a desenvolva do jeito que acreditar melhor. Tudo por causa daquele derradeiro fiapo de conversa. Uma despedida? Um novo encontro? Um convite? Uma promessa? Queremos saber. Suspeitamos. Não há maneira de ter certeza. Queremos ter. Queremos o seguro, o certo, o completo. O que temos é perigo...

Atualização importante

Tinha uma porção de coisinhas desimportantes pra falar. Um incômodo em relação a outra porção de coisinhas desimportantes que li e ouvi, principalmente que li, já que tenho escutado tão pouco e cada vez pior. Escuto pior por entender que já não faz tanta diferença, mas também por problemas de saúde. O que me leva a perguntar: é verdade que chegamos a esse estágio pré-larval em que cada um fala o que pensa e todo mundo entende o que quer?   No estado geral das coisas (importantes e desimportantes), insistir no que não tem importância pode ser, mais que um desvario, um ato de afirmação. E tudo seria perfeito se abraçar esse ato de afirmação não exigisse tanta energia, se não levasse ao quase esgotamento, se não terminasse por nos obrigar a gastar mais tempo explicando razões do que efetivamente gozando o processo.     Caga-regras (nota cômica: o corretor ortográfico sugeriu, indiretamente, “defeca-regras”) e otimista que sou, queria um decálogo. Isso ...

Paula Fernandes in concert

Acima, uma típica banda de garagem dos anos oitenta posa para fotografia  A novidade é que os funcionários da garagem da empresa São Benedito compraram um rádio. É um modelo barato, a pilha, fácil de encontrar nos camelôs do centro. Tem entrada USB. É azul fluorescente. Armazena uma milhão de canções, falem de amor ou sexo.   Ocorre que os funcionários da garagem da empresa São Benedito passam a madrugada sintonizados numa FM. Escutam principalmente forró e música romântica. O volume é aceitável, ninguém reclama. De vez em quando o vento sopra uma nota mais estridente. Está tudo bem, digo pra eles. Continuamos assim por um bom tempo: os três homens movendo-se entre baldes e escovões e eu, fumando na janela. Avisto ao longe um gato. Será um gato?, pergunto a ninguém. Sim, é um gato, ninguém responde.    Por volta das 3h30 da manhã, quando a garagem volta a ganhar movimento, decidimos parar. Estamos cansados. Gastamos o corpo no exercício da banali...

Super

Acumulava por não saber operar de outra maneira. Uma máquina cujo funcionamento obedecia a uma única e simples regra: sorva. Depois entorne. Assim era com ele. Ia vendo a linha subir centímetro a centímetro no copo estreito. Esperava o momento certo, que era sempre o último.  Depois não havia mais nada. Era a regra de ouro, o momento certo corresponde ao último e depois dele, nada.   À espera desse instante de enxurrada é que ia assistindo tudo acontecer. Daí as imagens recorrentes de tempestades e outros fenômenos da natureza que causam destruição em escala massiva. Arrasam com tudo, não deixando rastro, apenas casas amontoadas e árvores de raiz pra cima. Via-se irmanado a essa natureza destrutiva, à ação que, mesmo imprevista, pode ser mapeada, remontada. Os primeiros passos visíveis. A lenta formação da tormenta. A onda menor avolumando-se à maior, correntes marítimas de temperaturas diferentes encontrando-se de repente no meio do oceano. Um tectonismo que...

Ripley salva

Vinda do espaço, uma mulher aterrissa – cai, melhor dizendo – em um planeta onde vive um pequeno grupo de homens. Uma colônia penal devotada ao trabalho e à fé. Formado por estupradores, homicidas, sociopatas etc., esse grupo se dedica principalmente a escavar o solo à procura de minério, que depois será transformado em chapas para contêineres de lixo espacial. Toda a cultura é de subsistência. A fé sustenta-se na expectativa da chegada do salvador. De acordo com o carcereiro de Fury 161 – como o planeta é conhecido no sistema –, a crença não elimina a monstruosidade de que cada uma dessas pessoas é portadora. Apesar da péssima aparência, no planetinha há ordem, relativa paz, comida, água e uma atmosfera respirável. A frágil ascese mantém cada elo atado. A condição de marginalidade do lugar ajuda os internos a ignorar o restante do universo: a vida que tinham lá fora. Estão todos concentrados em humanizar-se por meio do labor e da religião. Tudo isso acaba quando a...

Planeta ao léu

Há horas venho pensando nesse planeta perdido no espaço. O mais miserável do universo, imagino, para logo depois corrigir: há sempre alguém em situação pior, seja você um planeta ou uma cuia de chimarrão. Um planeta-vagão esbarrando no que sobra dos cometas, também restos de outras colisões. Não possui uma única estrela a que se agarrar, enroscando seu campo gravitacional ao dela. Não tem um cinturão de asteroides a circundá-lo. Sequer uma lua para usar como brinco. É o verdadeiro Melancolia, eternamente azul e solitário. Um trem fantasma gasoso com seis vezes o tamanho de Júpiter.  Pobre animal celeste. Destituído de sistema, satélite artificial e sondas preparadas por inteligência humana. Uma existência sem propósito mais nobre senão o de boiar no vazio pelo tempo que os deuses julgarem necessário. Um vetor a serviço da inércia. Uma materialidade arruinada. Um desperdício químico. Há dias em que a gente se surpreende com a alma avinagrada. Uma vontade imensa de ...

Cigarros

Já nem digo: parei de fumar. Digo apenas: fumo há uma semana, a carteira esvazia-se, tento não combinar cigarro e bebida, estabeleço intervalos maiores entre um cigarro e outro, elejo horas do dia em que saio para fumar. No fim da tarde. Depois do almoço. Na saída do trabalho, enquanto caminho. Após o sexo: um clichê verdadeiramente prazeroso.     É um avanço medicar-se com doses homeopáticas da própria doença, que, espera-se, vá desaparecendo aos poucos, até finalmente sumir. Existe, mas não está. Sem o imperativo da proibição, parte do desejo se esvai. Com o cigarro não é diferente. Ele está lá, ao alcance da mão, sobre o tampo da mesa, entre um pacote intacto de Bis e um cesto de pães. Perto da sanduicheira. Ao lado da garrafa do café. Entre livros. Cabem muitos objetos em cima da geladeira, e um deles é a caixinha branca contento duas fileiras de cigarros. É um objeto da casa, portanto. É desejado. A casa comporta tantos desejos. Nem me atrevo a listá-los...