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Procura-se

Escrever é às vezes passar horas à procura do que escrever e ao cabo de uma manhã inteira dedicada a batucar vazios concluir entre pesaroso e excitado que a procura foi o que de mais importante aconteceu nessas quatro ou cinco horas. E isso nos leva a conferir à busca o status de tema ou algo equivalente. Moldura de um tema, por exemplo, ou dobra que se enverga sobre si mesma, buraco que se abre e no lugar do objeto/pessoa pelo qual e por quem ansiávamos encontramos, que piada, outro buraco/pessoa. Então a busca corresponde à nova busca, eis uma velha premissa narrativa usada e abusada por desenhos animados e jogos de videogame, histórias fantásticas e boatos do quarteirão. Cada etapa justifica a etapa seguinte e por aí adiante. De repente, nos vemos subindo alguma encosta íngreme ou montanha ou nadando em rios de fogo ou enfrentando gigante com dez chifres ou parando em frente à toca de um animal selvagem precocemente domesticado que já não representa tanto perigo mas diante...

Sobre "A maçã envenenada", de Michel Laub

A maçã envenenada , de Michel Laub, ecoa procedimentos e temas caros ao universo do autor, a exemplo do impacto de eventos históricos na vida de personagens mantidos à boa distância cronológica e física dos acontecimentos. O livro arma-se em torno de um problema aparentemente banal: como a força-motriz do acaso altera drasticamente os rumos de uma história – de qualquer história. O resultado, porém, não empolga tanto nem aprofunda as questões apresentadas em romances anteriores.   Anunciado como a segunda parte de uma trilogia cujo capítulo inaugural foi o magnífico Diário da queda , o novo romance tem grande autonomia ficcional. É desnecessário informar que se trata de uma continuação. O dado, mencionado na orelha do livro, não fará a menor diferença no decorrer da leitura. O cotejo entre personagens e situações não convence de que os dois romances guardem uma conexão mais íntima que vá além de uma vaga moldura sentimental comum.   Do que trata A maçã envenen...

Árvore velha

Enquanto escrevia que começo e fim são o prolongamento de outra coisa e que essa outra coisa repousa em algum lugar do tempo inacessível, minha vó se despedia da gente no hospital. Estava há dois meses internada depois de uma queda em que fraturou o fêmur. Levada à unidade de atendimento, rapidamente apareceram mil e uma doenças, fragilidades, vacilações de um corpo de 95 anos que se mostrava a cada dia mais cansado do que todos nós desejávamos que estivesse. A vó foi embora sem dar um alô derradeiro pra gente – ou pra mim, que não a visitei após a última transferência. Nesse tempo, telefonava pra mãe, perguntava, tentava animar as coisas. Fui vê-la quando ainda estava na UTI e a situação era mais delicada.  Há duas semanas, porém, houve pequena melhora, que resultou na mudança para um leito destinado a pacientes cujo risco de morte deve ser um degrauzinho menor. Os rins voltaram a funcionar, o pulmão dava sinal de que iria se recuperar, os olhos abriram e ela fina...

Um final para todas as histórias

A grande dúvida é se leio o final de “Caverna do Dragão”, e com isso me liberto do mistério que se arrasta há pelo menos vinte e cinco anos, ou se, conscientemente, evito a todo custo conhecer esse segredo de Fátima dos desenhos animados recentemente divulgado na internet.  As duas alternativas são igualmente tentadoras, mas tendo à segunda, ou seja, a me distanciar do conhecimento derradeiro – considerando-se a possibilidade remota de que esse final coloque realmente uma pá de cal na história do grupo de adolescentes que viajou do parque de diversões a um parque do mundo fantástico. Conhecer ou não conhecer, eis o problema: quem conhece elimina o mistério ou amplia-o? Por que tanta gente resolveu forjar finais próprios durante todo esse tempo em que não foram produzidos novos episódios para a série? Afastado da leitura, teria o privilégio de seguir imaginando, como qualquer pessoa saudável, meus próprios finais para a aventura, é verdade, mas também me privaria d...

Sobre "As miniaturas", de Andréa del Fuego

Sobre As miniaturas , de Andréa Del Fuego, um comentário brevissimamente superficial (como veremos, a despeito de manter a superficialiadade, acabei escrevendo muito, mas preferi preservar o espírito de falsa modéstia do primeiro parágrafo) porque tenho de fato pouco a dizer do livro e o pouco que tenho, considero-o baseado em uma única leitura de um única obra da autora. Que julgo não haver entendido completamente, ou nem parcialmente, de modo que gozei da leitura, entendendo por gozar o fruir do jogo de espelhos e metalinguagem forjado por escritores, quase nada, digo: muito pouco.  Colaborou para isso, claro, a própria autora, sem a qual não haveria livro nem história nem personagens nem a trama do edifício cujo nome não lembro agora. A gente - solidariedade retórica - sente logo quando não vai vingar esse “acordo tácito” segundo o qual o leitor se deixa enredar pelo escritor e diz "ok, vou prazerosamente fingir que as coisas são assim", ou quando vai vinga...

Cair três vezes

Hoje talvez não fosse o dia certo para ler Diário da queda. Sem dar importância a isso, liguei o computador, pluguei a internet na tomada e resolvi então que ainda podia escrever algo nesse restinho de domingo, mas o quê, pensei, e decidi que falaria desse livro incrível do Michel Laub.   Depois de concluir o romance, o sentimento era de estar às voltas com o conteúdo visceral de três corpos, as dores de uma família, as manobras domésticas, por assim dizer, e isso nem sempre é algo agradável. Isso quase sempre é muito desagradável pelo que projeta da nossa própria história e, por conseguinte, da própria família. O narrador de Laub expunha-se cruamente. E o domingo é um dia mais para as amenidades. Pensem nesse triângulo traumático formado por avô, pai e filho em Diário da queda. É um fardo que o leitor só deixa descansar um pouquinho na derradeira linha, e olhe lá, e isso também se confronta com o espírito pouco voluntarioso do domingo.   Pensem ainda que o...

Sobre "Divórcio", romance de Ricardo Lísias

Crédito da foto:    Fernanda Fiamoncini De ontem pra hoje, praticamente não fiz outra coisa senão ler Divórcio, novo romance do Ricardo Lísias, autor de O clube dos suicidas e O livro dos mandarins etc. Entre 23 horas e 4 da manhã, atravessei uma maratona de frases distribuídas em 240 páginas que se despedaçavam do corpo do protagonista, também chamado Ricardo Lísias, como partes da fuselagem de um avião que se desfaz ao cair de uma altura incrível, ameaçando pegar fogo antes mesmo de tocar o chão. Foi assim que me senti o tempo inteiro enquanto lia Divórcio, um astronauta cuja roupa despressuriza e cai da corda bamba, um aviãozinho de papel de repente colocado em pleno vôo do alto de um prédio, um bólido em chamas desaparecendo no contato com a atmosfera extrema de um planeta estranho. Um corpo sem epiderme, nu, exposto.    Fui atingido. É impossível não ser. Divórcio, história de traição, amor e vaidade, é uma leitura em queda, vertiginosa, ant...