Sobre As
miniaturas, de Andréa Del Fuego, um comentário brevissimamente superficial (como veremos, a despeito de manter a superficialiadade, acabei escrevendo muito, mas preferi preservar o espírito de falsa modéstia do primeiro parágrafo) porque
tenho de fato pouco a dizer do livro e o pouco que tenho, considero-o baseado em
uma única leitura de um única obra da autora.
Que julgo não haver entendido
completamente, ou nem parcialmente, de modo que gozei da
leitura, entendendo por gozar o fruir do jogo de espelhos e metalinguagem forjado por escritores, quase nada, digo: muito
pouco. Colaborou para isso, claro, a própria autora, sem a qual não haveria
livro nem história nem personagens nem a trama do edifício cujo nome não lembro
agora.
A gente - solidariedade retórica - sente logo quando não vai vingar esse
“acordo tácito” segundo o qual o leitor se deixa enredar pelo escritor e diz "ok, vou prazerosamente fingir que as coisas são assim", ou
quando vai vingar somente pela metade ou nem isso. O curso normal das
leituras é avançar e avançar, seguir em frente, parar apenas para checar o
necessário. Voltar uma página é medida emergencial.
Bem, o que temos aqui: um edifício
espichado muitos andares no centro da cidade, pessoas que procuram o edifício
por um bom motivo – querem sonhar -, profissionais dedicados a induzir essa
clientela ao sono e ao sonho – esses profissionais se chamam oneiros -, uma mãe
taxista cujo marido aparentemente a abandonou, um filho cujos sentimentos se
dividem entre o carinho e cuidado com essa mãe um tanto desequilibrada e o
afeto dirigido a alguém que pode ser o seu pai verdadeiro, uma corporação
rigorosa quanto ao cumprimento de normas de atendimento da clientela, um jornal
da firma – Algodão -, as vidantas – pessoas que adivinham o futuro nas cartas. E, finalmente, as miniaturas.
As miniaturas, como o próprio nome diz, são
representações de objetos em escala muito menor que a real. Utilizadas para
sugerir estados mentais em quem busca o edifício a fim de sonhar, as miniaturas
têm o poder de criar realidades diferentes – um elefante, um casa, uma língua,
portanto, vão induzir a sonhos distintos.
Bem, o que temos aqui novamente: uma firma
encarregada de infundir sonhos nas pessoas, fabricá-los, customizá-los segundo
regras e métodos próprios; uma massa de seres humanos que não faz ideia de que
seus sonhos são meros construtos adquiridos mediante cadastro em loja e
pagamento em carnê; um oneiro, profissional a cargo de quem está a indução do
sonho, que transgride as regras da empresa ao se interessar por duas pessoas (a
mãe e o filho) a ponto de interferir em seus destinos – e aqui me pergunto se
estou superinterpretando a obra ou se algo no texto realmente me permite afirmar
que o oneiro interferiu mesmo na vida da mãe e do filho.
Dito isso tudo, concluo que: os oneiros podem
ser diabretes que na verdade roubam sonhos e os comercializam no centro da
cidade – o leite, como todos sabem, é um alimento fundamental no processo de
desintoxicação; e os sonhos, outra coisa que todos sabem, são tóxicos. Frequentemente, o que só quem leu o romance sabe, os oneiros recebem canecas de leite no refeitório da firma - ou seriam latas de leite em pó? O efeito é o mesmo.
Não sendo
da mesma esfera que nós, os oneiros, entidades incansáveis que trabalham dia e
noite e nos observam através das persianas nos muitos andares do prédio, habitam
uma dimensão acima ou abaixo da nossa. Vivem uma realidade paralela, onírica,
fantástica e, me permitam empregar o termo, kafkiana.
A burocracia é o grande personagem do
livro. Ora, ora, ora, por trás da operação trabalhosa que é induzir um homem ou
mulher ao sonho, e o fato de que alguém procure uma empresa para ajudá-lo a
sonhar é algo a ser levado em consideração nesse jogo, esconde-se uma máquina profissional.
O exército de oneiros obedece a padrões ensinados em cartilhas, há fiscais que
passam de andar a andar avaliando a qualidade do trabalho, funcionários do mês,
informes e toda essa pequena microesfera de fenômenos que orbitam a rede de
relações numa empresa – até que algo acontece. Crise.
Como em qualquer negócio que se preze, os
desvios de conduta ou baixa produtividade no edifício são punidos ou com
dispensa – casos raros – ou com rebaixamentos – oneiros malcriados viram vidantas.
Um oneiro que se interesse além do recomendado por um cliente será punido
exemplarmente e encaminhado aos andares de baixo.
A burocracia, instalada nos andares
superiores de um prédio sempre lotado, cria sonhos, e nisso talvez resida a
grande piada do livro: sonhos em larga escala.
Outro ponto de destaque é o alheamento das
massas – mãe, filho e demais personagens – em relação à ingerência que essa
máquina burocrática tem na produção de aspectos importantes do cotidiano. Depois
de sofrer um acidente de carro, a mãe é acordada por um oneiro, que despeja no
rosto dela um copo de leite. Ela acorda, o filho agradece – superinterpretando?
– e todos se felicitam.
Afinal a crise se abate e a clientela míngua.
Faltam sonhantes – pessoas que procuram a empresa interessadas em pagar por um
sonho, mas novamente suponho que paguem por um serviço que no fim das contas
demanda tempo, mão de obra e espaço – o prédio fica no centro de uma metrópole.