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Procura-se



Escrever é às vezes passar horas à procura do que escrever e ao cabo de uma manhã inteira dedicada a batucar vazios concluir entre pesaroso e excitado que a procura foi o que de mais importante aconteceu nessas quatro ou cinco horas. E isso nos leva a conferir à busca o status de tema ou algo equivalente. Moldura de um tema, por exemplo, ou dobra que se enverga sobre si mesma, buraco que se abre e no lugar do objeto/pessoa pelo qual e por quem ansiávamos encontramos, que piada, outro buraco/pessoa.

Então a busca corresponde à nova busca, eis uma velha premissa narrativa usada e abusada por desenhos animados e jogos de videogame, histórias fantásticas e boatos do quarteirão. Cada etapa justifica a etapa seguinte e por aí adiante. De repente, nos vemos subindo alguma encosta íngreme ou montanha ou nadando em rios de fogo ou enfrentando gigante com dez chifres ou parando em frente à toca de um animal selvagem precocemente domesticado que já não representa tanto perigo mas diante do qual não conseguimos disfarçar o medo.

Procurar o tema não significa encontrá-lo mesmo quando o encontramos em meio à aridez ou quando julgamos tê-lo nas mãos, palpável, e exibi-lo é algo tão fácil e prazeroso, revirá-lo e dizer a quem passa pela rua “vejam, este é o tema, foi isto que consegui depois de uma manhã inteirinha às voltas com a própria agonia de ser quem a gente é”. 

Só aí descobrimos que a correspondência entre desejo e objeto é precária, o primeiro superando o segundo em léguas, talvez anos-luz. 

Disso resulta que o encontro frequentemente é uma forma traiçoeira, ingrata, escorregadia, e é apenas ao percebermos isso que nos damos conta de que planejar e arquitetar são etapas cujo grau de falibilidade talvez se equipare ao de permitir que cada coisa siga o rumo que quiser, planejando apenas o suficiente para não enfiarmos a cara no muro ou no poste a toda velocidade.

Quando a falta vira tema e a ausência, moldura, a linguagem desdobra-se para cavar e cavar até encontrar um veio ralo e nesse veio ralo um fiapo de sentido. A linguagem torna-se ainda mais metafórica, perde referenciais, é verdade, mas também cumpre um papel de se mostrar, revelando os bastidores de uma mágica mais ou menos eficiente: a de fazer objetos desaparecerem. 

Prestem atenção em como faço tudo isso parecer diferente do que é, promete a linguagem, cheia de maneirismos, refém das pantomimas de sempre, ridiculamente literal. 

E quando não há objetos com os quais se pode desaparecer? Os objetos que se usa na onerosa operação de encantamento do dia a dia? 

Esse é o drama de quem conta histórias: a falta, que logo se converte, por ação direta da alquimia, em potência. 

Tematizar a busca é falar por outros meios sobre o que se busca, como se busca e quando se busca, em que momento do dia e quais as ferramentas utilizadas nessa empreitada. Quando o assunto é outro, a morte de um ente querido ou as estripulias de um cão farejador ou uma doença ou amor falido ou amizade que descamba para a intriga ou sexo, as estratégias dissimulam-se com mais facilidade. 

O que há de pretensão e arbítrio, ou seja, todo vetor que se pareça com vontade, se perdem entre as peripécias destinadas a enredar os leitores/espectadores/partícipes. 

Tornar a busca o centro da narrativa é igualmente uma maneira de admitir que nessa manhã ou nessa noite tudo parecia tão fora do lugar ou, pelo contrário, no seu devido lugar, preenchido, funcional, esplendidamente encaixado, que a falta precisou ser inventada, a mentira aumentada, a dor elevada.

Procurar a procura, inventar a falta e falsificar a mentira, por redundante que soe, são três procedimentos com os quais em algum momento, feliz ou infeliz, a gente tem de lidar.  

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