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Sobre "A maçã envenenada", de Michel Laub



A maçã envenenada, de Michel Laub, ecoa procedimentos e temas caros ao universo do autor, a exemplo do impacto de eventos históricos na vida de personagens mantidos à boa distância cronológica e física dos acontecimentos. O livro arma-se em torno de um problema aparentemente banal: como a força-motriz do acaso altera drasticamente os rumos de uma história – de qualquer história. O resultado, porém, não empolga tanto nem aprofunda as questões apresentadas em romances anteriores.  

Anunciado como a segunda parte de uma trilogia cujo capítulo inaugural foi o magnífico Diário da queda, o novo romance tem grande autonomia ficcional. É desnecessário informar que se trata de uma continuação. O dado, mencionado na orelha do livro, não fará a menor diferença no decorrer da leitura. O cotejo entre personagens e situações não convence de que os dois romances guardem uma conexão mais íntima que vá além de uma vaga moldura sentimental comum.  

Do que trata A maçã envenenada? Um suicídio, uma sobrevivente, um namoro atropelado, um acidente, um genocídio – como todos esses elementos se entrelaçam, ao menos na cabeça do narrador, e criam uma teia de acontecimentos que repercutem indireta e diretamente na vida de um jovem de 18 anos que cumpre rotina no Exército na mesma semana em que o Nirvana fará um show em São Paulo. O ano: 1993. 

Como em Diário da queda, a história é narrada por uma primeira pessoa empenhada na tarefa de analisar quadro a quadro os movimentos ambíguos de um passado que acabou moldando o futuro. Outra semelhança com Diário... é o fato de que esse narrador tem como ponto de partida um evento trágico catalisador. É sob o prisma de um conjunto particular de catástrofes que ele vai interpretar os acontecimentos - pessoais e históricos. 

O suicídio fica evidente na primeira frase do livro e mesmo no título. Kurt Cobain, ex-líder do Nirvana, atira na própria cabeça com uma espingarda. Tinha 27 anos. À morte do ídolo se relaciona o massacre de hútus sobre os tútsis (Ruanda, abril de 1994), ocorrido apenas algumas semanas depois da tragédia com o jovem roqueiro. O narrador, então, se pergunta por que um evento se sobrepôs ao outro, a morte de um único homem obliterando o morticínio de milhares de pessoas de uma mesma etnia.

Immaculée é a sobrevivente do massacre. Após três meses encerrada num banheiro com outras sete mulheres, período no qual passou dos mais de 50 kg para apenas 29, a jovem de etnia tútsi foi resgatada para se transformar, conforme o próprio livro classifica, em uma espécie de Anne Frank moderna. O narrador a conhecerá anos depois, quando Immaculée vai a São Paulo para divulgar o livro no qual relata suas experiências.

Tem-se aí duas experiências extremas cuja ligação é feita a partir da perspectiva distante do jovem narrador que viaja para Londres após viver a sua tragédia particular. Do individual ao geral, e deste novamente ao individual. Em A maçã envenenada, tragédias, históricas e pessoais, retroalimentam-se, e nenhuma ação deriva do vazio. 

O que não quer dizer que haja uma explicação à altura da gravidade dos eventos – às vezes, dá-se o oposto. À gravidade dos atos corresponde uma banalidade irritante. Há explicação satisfatória para o suicídio de Cobain? 

Situados nos extremos, portanto, há o jovem que, a despeito de ter diante de si o que pudesse desejar, se mata; e a jovem que, à revelia da tragédia, sobrevive – dias depois, ela descobriria que a própria família havia sido dizimada a golpes de facão, ferramenta com que os hútus deram cabo de boa parte dos tútsis.

O protagonista tenta situar Valéria (a namorada instável com quem fica 11 meses) e a si mesmo em algum ponto entre esses polos involuntariamente antagônicos, um representado por Cobain e o outro por Immaculée, a quem o narrador entrevistará muitos anos após ter trocado a faculdade de direito pela de jornalismo, uma mudança que é também causa e efeito de outras tantas a surgir na esteira do pequeno terremoto que Valéria provocará.

Nesse jogo, o narrador de Laub tenta compreender o que se passa consigo, com Valéria e com Immaculée. A carga dramática reside no efeito que nasce do desencontro entre o protagonista e Valéria, personagens que se afastam na mesma medida em que se atraem.  

A marca de A maçã envenenada, no entanto, parece ser a da irregularidade. Ainda que acene com alguma encruzilhada moral ou abra espaço para o lirismo, o romance se distancia da densidade de Diário da queda. Não se mantém desafiador do princípio ao fim – a sensação é de que vai se diluindo ainda mais da metade para o final. Prorroga uma tensão por cujo desfecho não há tanta expectativa; ou, pior, sustenta artificialmente uma tensão que é precária em sua trivialidade. A dramaticidade da qual se acerca é frágil. 

Todavia, o livro não decepciona propriamente. Cumprida a leitura, porém, fica-se com bem pouco à mão. E se ocorre a alguém lembrar que esse é o segundo volume de uma trilogia cujo início foi Diário..., esse bem pouco é quase nada. 

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