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Árvore velha




Enquanto escrevia que começo e fim são o prolongamento de outra coisa e que essa outra coisa repousa em algum lugar do tempo inacessível, minha vó se despedia da gente no hospital. Estava há dois meses internada depois de uma queda em que fraturou o fêmur. Levada à unidade de atendimento, rapidamente apareceram mil e uma doenças, fragilidades, vacilações de um corpo de 95 anos que se mostrava a cada dia mais cansado do que todos nós desejávamos que estivesse.

A vó foi embora sem dar um alô derradeiro pra gente – ou pra mim, que não a visitei após a última transferência. Nesse tempo, telefonava pra mãe, perguntava, tentava animar as coisas. Fui vê-la quando ainda estava na UTI e a situação era mais delicada. 

Há duas semanas, porém, houve pequena melhora, que resultou na mudança para um leito destinado a pacientes cujo risco de morte deve ser um degrauzinho menor. Os rins voltaram a funcionar, o pulmão dava sinal de que iria se recuperar, os olhos abriram e ela finalmente saiu do coma induzido. Continuava sem falar por causa de uma traqueostomia que a impedia sequer de abrir a boca.

A vó se comunicava com os olhos, que iam de um lado pra outro vagarosamente, mas sobretudo com as mãos. Foi movimentando-as em câmara lenta que deu a entender que precisava do terço. 

Não sei se conseguiu rezar, se a mera repetição do gesto a acalmava, se pedia não o terço mas um contato com a mão, um toque, sentir alguém perto. Importante é que, segurando as continhas gastas entre os dedos inchados, acalmou-se após horas de agitação e luta contra a miríade de tubos e fios que saíam do corpo. 

Ontem no velório, uma noite de lua grande, me surpreendi imaginando que, entre tanto choro, desespero, abraços e despedidas, a vó fosse a mais calma, um comportamento que ela teria sabido respeitosamente recusar se pudesse ver a si mesma ali, no centro da sala, cercada por familiares, primos que não se viam há dez anos, amigos, sobrinhos etc. 

Aquela ilha de calmaria alcançada ao custo de tanto sofrimento agora recebia visitantes esporádicos, viajantes acidentais e náufragos de uma dor sem nome. 

A morte encerrava, então, uma ausência irreversível, e contra isso não havia argumento. Mas essa ausência também possibilitava a recuperação de alguns laços. Lembro que, durante o enterro do meu tio, alguém me chamou a um canto e me fez prometer que nós, a família, iríamos nos reunir em outra situação que não aquela. “Não pode ficar assim.” Concordei na hora. Choramos juntos.

Isso foi há seis anos. De lá para cá, jamais encontrei nenhuma daquelas pessoas e nenhuma delas me encontrou. Ontem, todavia, nos vimos todos novamente: eu a eles e eles a mim. Um reencontro que tem na ausência um evento catalisador.

Não imagino que isso seja algo exclusivo ou traço comportamental mais acentuado na minha família do que em outras. Qualquer agrupamento de pessoas que partilham o mesmo sangue abriga sempre um galho ou porção deles que se distancia, enverga, retorce e eventualmente cai. Na nossa família dá-se o mesmo: quando bate o vento, há galhos que se enroscam, outros que se afastam.

Essas diferenças, parte natural dos movimentos do tronco, talvez sejam necessárias para que haja equilíbrio.

A vó, que morreu ontem sem deixar instruções aos viventes, era esse tronco. Foi a partir dele que se originaram as pequenas samambaias que somos, cada uma desfolhando-se e expondo-se ao sol e regando-se e florindo à sua maneira. Todas nascidas no mesmo brejo d’alma.

Casca morena, bastante enrugada, enodoada, resistente. Foi tombando aos bocados, a vó, cada braço de raiz se desprendendo da terra como uma pele que se desligasse do corpo ao contato de quase nada. Temia a morte mais que alma penada e a ela se opôs o quanto pode, fincando do lado de cá os pés grossos de tanta roça.

Ocorre que o terreno a que tentava se agarrar era já muito cediço pra sustentar o peso desse corpo gasto, e a dona Maria, árvore quase centenária mas ainda boa de sombra, caiu.

Caiu às portas dum mês de muita ventania, que é setembro, quando o aracati dobra o coqueiro em cinco partes e a goiabeira se entorta no quintal, varrendo o terreiro com as mãos.

O vento leva tudo, vó, casca, areia e até pedra - menos a saudade. 

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